quinta-feira, 2 de abril de 2009

O PORTAL DO ROMANCE

Geraldo Borges

Este pequeno ensaio fala sobre a parte mais difícil da arte de ficção, que é o primeiro parágrafo do romance, ou mesmo do conto clássico. A sua abertura. A apresentação do personagem ao leitor, juntamente com seu cenário. Depois o começo da história. Para esclarecer melhor este assunto fui buscar nas páginas da literatura de ficção, nos seus primórdios alguns exemplos de abertura, que até hoje servem de modelo. Em primeiro lugar cito Cervantes (1547- 1616 ).

“Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar, não há muito tempo vivia um fidalgo, daqueles de lança ao cabide, adaga antiga, rocim magro e galgo corredor... Pretendia-se que tinha a alcunha de Quijada ou Quesada, pois quanto a isso existe uma certa diferença entre autores que tratam deste caso; se bem que por conjecturas verossímeis se dê a entender que se chamava Quejana. Porém, isto pouco importância tem para o nosso relato, basta que a sua narrativa não se afaste um ponto da verdade.”

O que está escrito no parágrafo acima é o começo do primeiro capitulo do Engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, a fonte de todo o romance ocidental, onde Cervantes, famoso romancista e escritor apresenta o seu personagem titular e o coloca em um lugar na Mancha, de cujo o nome não quer recordar. Não sei por que motivos. Talvez políticos. Mas para melhor compreensão de nosso ensaio que vai ter muitas citações, vamos declinar a Bíblia. Livro de importância especial para a formação da literatura Européia. Pois é mais do que sabido e consagrado que a Bíblia, principalmente o Velho Testamento influenciou a maioria dos autores europeus e adjacências, tanto quanto Homero. Para sermos mais preciso o inicio do romance D. Quixote é pura influencia da Bíblia. Vamos ilustrar.



“Havia na terra de Hus, um homem chamado Jô, integro e reto, que temia a Deus e fugia do mal. Nasceram-lhe sete filhos e três filhas. Possuía sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentas jumentas e uma grande quantidade de escravos".

O livro de Jô é considerado uma obra prima da literatura hebraica, e expressa grande profundidade sobre a alma humana pelo complexo jogo de interesse, que Deus e o Diabo possuem por ela. Jô sai humilhado, ofendido e exaltado desse jogo. O livro de Jô segundo comentário da Bíblia é uma composição literária estreitamente aparentada com o gênero dramático, cuja ação nos é apresentada numa introdução e numa conclusão em prosa que enquadra um longo poema dialogado. O autor, alias, desconhecido, situa a sua composição no quinto século AC, em lugares e situações assaz imprecisas . O personagem de Jô era para os antigos israelitas uma figura tipo de justo sofredor.
Saltando agora do Velho Testamento para os tempos modernos vamos fazer mais algumas citações de autores que, com certeza, beberam nas paginas da Bíblia ou de Cervantes. Vejamos Edgar Alan Poe (1809-1849). Trata – se de um conto que tem o nome do personagem principal.

“Que me seja permitido chamar-me William Wilson. A página em branco, que tenho diante de mim, não deve ser manchada com o meu verdadeiro nome. Este nome já tem sido demais objeto de desprezo, de horror e de ódio para a minha família .”

Trata-se de um conto clássico de terror psicológico Gótico. A própria ambigüidade do nome já deixa o leitor curioso com o enredo. O conto é fantástico, antológico.
Citemos agora Eça de Queiroz (1840-1900 ) Este escritor português exerceu grande influencia nos escritores brasileiros do romance de 30. Vejam o inicio de seu romance, - O Mandarim, Um texto fantástico e cheio de fantasia, onde o Diabo deita e rola.
Prometendo uma grande fortuna a quem matar um mandarim na China. A obra é uma alegoria.


“Eu chamo-me Teodoro – e fui amanuense do Ministério do Reino. Nesse tempo vivia eu à Travessa da Conceição numero 106, na casa de hóspede da D. Augusta, a esplendida D. Augusta, viúva do major Marques . Tinha dois companheiros: o cabrita, empregado da Administração do bairro central, esquio e amarelo como uma tocha de enterro, e o possante, o exuberante tenente Couceiro, grande tocador de viola francesa.”



Eça apresenta o seu personagem na primeira pessoa, estilo direto, juntamente como Poe. Já o texto de Dom Quixote e de Jô, aparecem na terceira pessoa, no estilo indireto, que parece nos mais solene, mas distante..
Agora vejamos Machado de Assis (1839-1908 ) em estilo indireto, no texto o qual dá inicio a seu romance Quincas Borba.

“Rubião fitava a enseada – eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma casa do Botafogo, cuidaria que ele admirasse aquele pedaço de água quieta. Mas, na verdade, vos digo, que parecia ver outra coisa.”

Observe o leitor. Na verdade, vos digo. Puro Evangelho. A enseada de Machado me leva ao mar. E resolvo citar Hermman Melville (1819-1891) um pouco fora da cronologia, mas dentro do mesmo século. O autor começa o seu belo romance, Moby Dick, por um imperativo suplicante. Um lindo começo que coloca o leitor a mercê do autor. A vontade que se tem e de viajar com a personagem.

“Chamai-me Ismael. Há alguns anos quando precisamente não vem ao caso -, tendo eu pouco ou nenhum dinheiro na carteira e sem nenhum interesse em terra, ocorreu-me navegar por algum tempo e ver a parte aquosa do mundo. É a minha maneira de dispersar o spleen e de regular a circulação do sangue.”

Este é o começo da história da caça da baleia branca, uma espécie de epopéia onde o homem e a natureza, com suas forças irracionais se defronta. O cenário é o mar, onde a aventura faz o spleen desaparecer. E a ação tomar corpo. Vejamos o que diz Raquel de Queiroz sobre este romance: “Se me perguntarem qual foi o livro que mais me marcou os primeiros anos de leitura, eu responderia sem hesitar que este livro foi Moby Dick, a historia da baleia branca também chamada a Fera do Mar”.



Agora para dar mais um exemplo de abertura de romances que são paradigmas do oficio de escritor, citarei dois grandes escritores que viveram a mesma época . Trata-se de Graciliano Ramos (1892 – 1953) e Ernest Hemingway (1899 – 1961). Vejam o estilo direto de Graciliano, na primeira pessoa, abrindo o portal do romance São Bernardo, depois de jogar dois capítulos fora, simbolicamente falando.

“Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove quilos e completei cinqüenta anos pelo São Pedro.”

A partir daí o leitor vai atrás do destino do personagem, e depara com um herói problemático, que ao escrever o seu romance se dá conta dos mecanismos de sua alienação.
Já o romance, O velho e o mar, na terceira pessoa. É também a história de uma derrota, mas, pelo menos mais assimilável. O velho luta contra um peixe e consegue trazê-lo ate a praia, se não inteiro, apenas o cadáver. Mesmo assim sua luta o satisfez.

“O velho chamava-se Santiago. Todo dia saia tripulando sua canoa; ia pescar no Gulf stream. Mas nos ultimas oitenta e quatro dias não apanhou um só peixe".

Por último me rendo a tentação de citar mais um romancista brasileiro, re inventor da nossa linguagem regional autor de fino trato – Jose Candido Carvalho (1914-1989). Vejam como começa o seu maravilhoso romance de nome O Coronel e o Lobisomem. Deixados do Oficial Superior da Guarda Nacional, Ponciano de Azeredo Furtado da praça de Campos de Goitacaes.
Eis o portal de seu romance.

“A bem dizer, sou Ponciano Azeredo Furtado, coronel de patente do que tenho honra e faço alarde. Herdei do meu avô Simão terras de muitas medidas, gado do mais gordo, pasto do mais fino. Leio no corrente de vista e até uns latins arranhei em tempos verdes de infância, com uns padres mestres a dez tostões por mês . Nos currais do Sobradinho, no debaixo do capotão de meu avô, passei os anos de pequenice, que pai e mãe perdi no gosto do primeiro leite.”

Não se pode negar que o autor de Coronel e Lobisomem foi um ledor inveterado de D. Quixote e também da Bíblia. Acredito que ficou claro no fechamento desta cronologia de citações, - desde de antes de Cristo, passando pelo renascimento, chegando até o século vinte -, que a maneira de apresentar personagens e cenário, no começo do romance e contos clássicos não mudou quase nada, pois mais que se apresentem novos ingredientes na receita para o romance ocidental. Claro que nossa literatura é um vasto mundo e este pequeno ensaio não tem a pretensão de esgotar o seu tema. Pois é apenas um simples esboço que pode muito bem ser aprofundado.

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