De todos os lados, brotavam feridos no mato
bombardeado, atraídos pela possibilidade de se protegerem. A entrada da vala
estava horrível, abarrotada de feridos graves e moribundos. Uma figura nua até a
cintura, de costas abertas por um ferimento, apoiava-se à parede. Outro, com
um naco triangular de cérebro pendurado no crânio, não parava de berrar de
forma estridente e tocante. Ali imperava a grande dor, e pela primeira vez eu
vislumbrava as profundezas de seu reino através de uma fresta demoníaca. E as
explosões não paravam.
Ernst Junger se alistou como voluntário durante a Primeira Guerra Mundial, resulta
dessa experiência Tempestades de Aço, tradução de Marcelo Backes, um relato, um
balanço, originário dos fatos em lugar da imaginação, talvez não devêssemos
chamar de literatura justamente por isso? Desse modo Diários dos moedeiros
falos, de Gide também deixaria de ser literatura? Mas quem garante que no
diário de Ernst Junger tudo se deu conforme o anotado?
E por falar em Gide. Sobre Tempestades de aço. “O mais
belo livro de guerra que já li.”
Considerado, por Gide e muitos outros, como o grande
livro de guerra, aproveito para discordar.
Caso o elemento que caracterize como “o grande livro
de guerra” seja a descrição fria, seca, a brutalidade expressa em cenas como a que abre esta resenha, então
podemos conversar. É tudo muito objetivo na narrativa de Junger, e me faz
lembrar exatamente o contrário, o sarcasmo, a ironia, sem perder a
objetividade, encontrado na primeira parte de Viagem ao fim da noite, de
Louis-Ferdinand Céline. Não digo que a narrativa de Céline é melhor ou pior que
a de Junger, no aspecto guerra , mas não fica devendo nada.
Vale lembrar que Celine foi execrado, escreveu
panfletos antisemitas. O valor de sua obra literária foi esquecido, mas e Ernst
Junger? Não foi um dos artífices do pensamento do Fuhrer?
Ora, ora. Essa tentativa de amenizar certas
atrocidades não sensibilizam este tosco resenhistas. Repare bem a dupla que
segue: O jurista Carl Schimmit, o ideólogo do Estado Total, Martin Heidegger,
ele mesmo, é de sua autoria “Profissão de fé em Adolf Hitler, lá ele descreeve
o Fuhrer como o instante de “retorno à essência do ser”. E muitos defendem
Heidegger.
Ernst Junger completava o trio assombroso.
Esses grandes amigos, amizade também ancorada em
convicções políticas, tornaria a se encontrar em 1955 por ocasião do
aniversário de Junger. Tão amigos e só o inocente do Junger não era nazista.
Era meio nazista. Conte outra.
Tempestades de aço é de uma crueza assustadora, ao
mesmo tempo de uma monotonia exemplar, descrever e descrever bombardeios,
ataques e suas consequências, o que muda
de vez em quando: o tamanho da ferida apenas.
Junger que de bobo não tinha nada colocou algumas
pitadas de um lirismo polar, e conseguiu amenizar um pouco a brutalidade, o
grotesco de sua narrativa. A selvageria do campo de batalha contrastando com a
indiferença daquilo que há de mais puro, nobre, e assustador; os pássaros..
“Era estranho que os pequenos pássaros da floresta parecessem não se importar
com esse barulho cêntuplo; eles pousavam em paz acima dos rolos de fumaça, nos
galhos destroçados”. Mais
adiante, num exercício de justificar o horror...
“Parecia
inclusive que os pássaros eram estimulados pela avalanche de ruídos que
rebentava em volta deles”.
O grande livro de guerra, já disse tenho minhas
restrições. Ode à brutalidade rasa, nada mais. Exclua as imagens, apague as
imanges deste Resgate do soldado Ryanm caro leitor, vamos buscar algum
significado na guerra, quem sabe uma ressignificação.
Pois bem, Tempestade de aço é um relâmpago entre a dor
e a grande dor. Mas o que seria essa “grande dor?”
Antes das dores, vale lembrar que Junger se alistou
logo no início da guerra na expectativa de uma breve aventura. Ocorre que não
foi aventura tampouco breve. Outros, assim como Junger, se alistaram com igual
propósito. Estes, frente a permanência dos horrores acabaram esquecendo o
objetivo primeiro e a aventura foi transformada em aventura em nome da
sobrevivência. Demonstravam medo e insatisfação com aquele estado de coisas. Enquanto
isso Ernst Junger, o meio nazi, demonstrava estar cada dia mais a vontade
naquele cenário.
A intimidade com corpos dilacerados, trincheiras sujas
de sangue, valas inundadas, chafurdar, matar, duvido que você não perceba uma
certa satisfação nas palavras de nosso narrador.
Jünger escava a guerra, escancara seu espanto,
descreve minuciosamente seus ferimentos e de seus companheiros de combate. Mas
Tempestades de Aço não é o balanço de uma campanha vitoriosa, é a radiografia
da falta de sentido e de como essa falta de sentido é capaz de se tornar o
sentido da vida e da morte.
A vida. A morte. E a dor? A
dor dos outros, de ver morrer. E não existe dor no matar? Novamente, a dor dos
outros. E a grande dor?
A grande dor se manifesta no horror dos feridos, no
terror que ronda àqueles que não consideram a guerra uma aventura, ou como
Junger, a guerra como um tribunal, a guerra como artífice da justiça.
Tempestades de aço é um livro sobre a mediocridade,
tão violento quanto o filme citado há pouco. Repleto de imagens e raso de
significados. Oponho a Tempestade de aço aquele que para mim é o grande livro
de guerra, o livro sobre a bestialidade humana.
É isto um homem? Se Junger busca a saída para sua aventura armado de
granadas, fuzis, facas, Primo Levi, quase nu, faminto, humilhado, desarmado,
mostra como o fraco, o oprimido, pode resistir. Não, caro leitor, você não
encontrará belicismo na narrativa de Levi, tampouco revanchismo. Apenas o
registro. O ser humano faliu. A prova é Junger, Heidegeer et caterva.
Sei que muitos absolverão Ernst Junger, os
contraditórios, os mesmos que condenaram Céline. Vai entender!
Mas nunca é tarde para arrependimentos, embora
arrependimento não tenha a menor serventia, considere-o como confissão de culpa.
Tempestades de aço foi escrito em 1920. Em 1939 seria
publicado, também por Ernst Junger, Nos
penhascos de mármore. Uma alegoria onde o autor denuncia a chegada da barbarie.
Um erudito gasta seus dias observando a natureza, enquanto isso um tirano aterroriza
aquela região. O mea culpa de Ernst Junger, este sim, um livro a merecer
repetidas leituras.
TRECHO
Um mensageiro de um regimento de Württemberg veio ter comigo,
a fim de conduzir minha coluna à famosa cidadezinha de Combles, onde deveríamos
ficar esperando provisoriamente na reserva. Foi o primeiro soldado alemão que
vi usando capacete de aço e me pareceu,
de imediato, um habitante de um mundo estranho e mais duro. Ao lado dele,
sentado na valeta da estrada, perguntei-lhe, ansioso, pela situação na
trincheira, e ouvi uma narrativa monótona sobre dias agachados em crateras
abertas pelas granadas, sem caminhos de ligação nem de aproximação, sobre
ataques intermináveis, sobre campos de cadáveres e uma sede louca, sobre
feridos convalescendo e sobre outras coisas mais. O rosto imóvel, emoldurado
pela borda do capacete de aço, e a voz monocórdia, acompanhada pelo barulho do
front, nos causavam uma impressão fantasmagórica. Poucos dias carimbaram aquele
mensageiro que deveria nos acompanhar ao reino das chamas, marcando-o com um
selo que parecia diferenciá-lo de nós de um modo indizível.
“Quem tomba fica ali, deitado. Ninguém pode ajudar. Ninguém
sabe se voltará vivo. Apesar de atacarem todos os dias, eles não conseguem
passar; e os que não os deixam passar sabem que é uma questão de vida ou
morte.”
Nada mais restava naquela voz a não ser uma grande
indiferença; ela havia sido calcinada pelo fogo. Com homens assim se pode
lutar.
AUTOR
Ernst Junger nasceu em
março de 1895, na cidade de Heidelberger, Alemanha. Ainda jovem abandonou a
escola para se unir à Legião Estrangeira e alistou-se como voluntário na
campanha militar da Primeira Guerra Mundial, pela qual recebeu a Ordre pour le
Mérite.Participou também da investida alemã na Segunda Guerra Mundial, mesmo
divergindo da ideologia nazista. Eernst Junger faleceu em fevereiro de 1998,
com 102 anos, deixando uma vasta obra ficcional e ensaística.
6 comentários:
A sua abordagem é repleta de preconceitos - oriundos de leituras apressadas e/ou ausência de leituras -, especialmente contra Jünger e Heidegger. Cuidado com as interpretações por demais tributárias ao senso comum e às opiniões mais propaladas: o fascismo se serviu muito mais disso do que de Jünger e Heidegger.
Olá! O senhor possui a obra em formato pdf? Em caso positivo, poderia enviar para o e-mail "samwisegamgi@bol.com.br" ? Agradeço.
Olá se puder, pode me enviar a obra em PDF também ? sarahcrsales@gmail.com
Olá,
Se puder me enviar o livro em PDF tbm...
somentedouglas@gmail.com
se tiver o PDf, para erza.namjoon@gmail.com por gentileza
Sou professor de escola publica e estou ministrando aula sobre a 1 guerra. Vc teria o livro em PDF? Quero trabalhar com os alunos e não temos recursos.
Pode me enviar? edelcio.evo@gmail.com
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