domingo, 31 de março de 2013

TERGIVERSAR. DOIS PONTOS


Luiz Horácio
 
Thamara. Eu escolhi o nome. Daqui alguns meses ela completará vinte anos. Incansável, ensina este velho pai desde seu primeiro dia.

Uma manhã, enquanto acariciava seu gato, lá se vão uns dezessete anos; me perguntou como acariciar um pássaro.

-Ora pai, nos pássaros a gente faz carinho com o olhar.

Aprendi a lição e passei a me demorar ainda mais observando os pássaros.

Os raríssimos leitores de meus livros, se não sabem, com certeza deduzem a admiração que tenho por esses  animais.

Os que cantam, os que não cantam, os coloridos e os nem tanto, os que voam alto e os que tentam.Mas um merece minha admiração especial, o urubu.

"Nojento, horroroso, todo preto", adjetivos destinados ao urubu.

"Louco,asqueroso,mórbido", os  que sobram para mim.

Luísa, a mãe escolheu o nome. Em novembro terá oito anos. Dia desses pediu que eu lesse Dom Quixote para ela. Breve resumo que ouviu atentamente. Prometi ler a história.

“Mas urubu, pai!”

Sim, urubu. A elegância do vôo me fascina.Falta-lhe apenas a coragem do quero-quero.

 

Independente do meu estado, alguém dirá  “de espírito”mas como disso nada sei, então omito, os urubus  sempre aparecem. E me melhoram. Fizeram falta em passado distante.

Quando minha mãe apagava a luz do meu quarto, o peso gelado da escuridão  sufocava minha frágil  coragem  despertando angústias adultas no menino.

Noite após dia, noite após dia, naquela hora eu pensava que iria morrer durante a escuridão, então não fechava os olhos até a janela mostrar o fim da noite. Medo, puro medo. O medo detesta os tolos. Enquanto isso a vida ia se enfeitando de mortos.

Nesses momentos de medo, eu almejava asas. Asas que me levariam à claridade, asas acelerando o tempo, asas explodindo o breu. Eu ia para a janela, mas os pássaros da noite não se deixavam ver.

Espero que minhas filhas, ao se tornarem adultas, que não sejam como a maioria, não acordem em meio ao sonho bom. Apenas os egoístas acordam em meio ao sonho bom. E eu que não posso afirmar que sonho, o que me resta?

Vivo  prestes a chorar. Na verdade, acredito ter desenvolvido uma maneira muito particular de chorar, sem lágrimas, sem soluços...Sofrer não purifica a alma, não purifica nada.

 Os urubus e os quero-queros os únicos seres que sabem sofrer. E por saber não sofrem. Eles não envelhecem.

 

Meus pais formavam a ilha de segurança e solidão onde desfilei minha vida até a adolescência. Segurança por que nunca o amor esteve ausente e solidão por que a proteção isola. Amigos, se haviam, eram poucos e apareciam de vez em quando. Não que eu sentisse falta de mais alguém, muito pelo contrário, curiosidade apenas. Hoje eu entendo e sinto falta. Proteção implica  tristeza? Seria, quem sabe, minha prematura percepção de uma tristeza intrínseca?

Olho para o céu e não percebo nenhum urubu solitário.

 

Chegam jornais, livros, revistas, é necessário ler tudo e tentar escrever algo original. Do que é lido extraio questões. Não faço julgamentos mas, apenas os amigos podem me decepcionar. Desconfiar sem dar certeza é uma arte que, confesso, gosto de praticar. Silêncio é o imperativo do meu bem estar. Só ou acompanhado.

 

Às vezes chego a temer pelos dias de minhas filhas, elas repetem minhas preocupações e meus medos. Ainda ontem Luísa perguntou o que fazer para deter o pensamento.

Afasto um pouco esse medo quando percebo que ela trata melhor suas dúvidas, bem melhor do que eu. Verbaliza, fala comigo, questiona. Eu as guardava em meu quarto, em meus pensamentos.

Thamara, criança, a caminho da praia:

"-Pai, eu não quero te perder, quando você ficar velhinho, bem velhinho e você morrer...eu vou guardar as suas fotos."

Equilibrando na fronteira entre o riso e o choro, abracei-a com o ímpeto juvenil que ainda me resta na expectativa que ela mantenha essa naturalidade.

Prainha é a praia que frequento no Recreio dos Bandeirantes, é lá que encontro Chiquinho, ele tem uma companheira mas ainda não fui apresentado, um urubu que habita o lugar. Raramente voa, costuma andar entre os frequentadores e tem por hábito roubar uma sombra, de cadeira ou barraca, pouco importa. Às vezes, quando o termômetro bate nos quarenta graus, cansa suas asas num vôo até o Parque da Prainha e se demora numa chuveirada. Volta renovado, “outra pessoa”.

Dia desses enquanto ele pegava comida em minhas mãos trocamos algumas idéias. Por que ele andava, podendo voar? E por que eu tinha que andar se tanto queria poder voar?

Ele riu, balançou seu pescoço pelado e sem dizer nada foi até a beira do mar. Ficou um tempo por lá, ele adora isso.

Ao voltar pediu que fosse buscar um coco gelado. Obedeci.

Assim que o canudo roncou avisando o fim próximo:

-Quer?

-Não, obrigado.Sei que minha memória não é lá grande coisa, mas você está me devendo uma resposta.

-Você é tão engraçado!  Mas vamos lá, acompanhe. Atenção porque o bagulho é profundo. Dois pontos. Faço questão de dizer dois pontos para o interlocutor perceber a metafísica da coisa. Agora vai. Dois pontos. você já ouviu dizer que querer é poder? Claro que já.Pois é a maior tolice, a prova viva ora me ouve. Quem falou isso a primeira vez foi um tio meu. Sou a prova viva, eu quero andar e ando. Você...você só sabe tergiversar...tergiversar. Tergiversar e falar.Tudo precisa ser dito, muito barulho, muito barulho não leva a lugar algum.Já me viu gritando, cantando? Não , claro que não. E tergiversando? Hein...hein? Tergiversando, dois pontos. Dois pontos porque tergiversar não é profundo. Me acompanha?

Você quer voar? Não queira. Bem que uma risada seria adequada nessa altura, concorda? Mas não farei isso, pelo menos neste instante.

Até amanhã.  Melhora o rango, s’il vous plaît. Beijos na Luísa e na Thamara. Fui.

   Dito isso retornou à beira do mar. Permaneceu por lá dez minutos, marquei no relógio. Voltou naquele passo elegante dos urubus, ao passar por mim lançou um olhar de desprezo misturado com ironia.Não fosse Chiquinho um urubu...ah Chiquinho...ah Chiquinho...

Logo parou, em seguida num vôo rápido e quase rasteiro alcançou a barraca da Tia que aluga cadeiras e barracas. Dali até o bolo que repousava, oferecendo-se, sobre o prato, foi um pulo.

Levou-o no bico e deliciou-se, sem alarde, sobre uma pedra. A tia viu. Sorriu.

No silêncio, a única possibilidade de não haver fingimento?

 

 

Nenhum comentário: