Luiz Horácio
Thamara. Eu escolhi o
nome. Daqui alguns meses ela completará vinte anos. Incansável, ensina este
velho pai desde seu primeiro dia.
Uma manhã, enquanto
acariciava seu gato, lá se vão uns dezessete anos; me perguntou como acariciar
um pássaro.
-Ora pai, nos pássaros
a gente faz carinho com o olhar.
Aprendi a lição e
passei a me demorar ainda mais observando os pássaros.
Os raríssimos leitores
de meus livros, se não sabem, com certeza deduzem a admiração que tenho por
esses animais.
Os que cantam, os que
não cantam, os coloridos e os nem tanto, os que voam alto e os que tentam.Mas
um merece minha admiração especial, o urubu.
"Nojento,
horroroso, todo preto", adjetivos destinados ao urubu.
"Louco,asqueroso,mórbido",
os que sobram para mim.
Luísa, a mãe escolheu
o nome. Em novembro terá oito anos. Dia desses pediu que eu lesse Dom Quixote
para ela. Breve resumo que ouviu atentamente. Prometi ler a história.
“Mas urubu, pai!”
Sim, urubu. A
elegância do vôo me fascina.Falta-lhe apenas a coragem do quero-quero.
Independente do meu
estado, alguém dirá “de espírito”mas
como disso nada sei, então omito, os urubus
sempre aparecem. E me melhoram. Fizeram falta em passado distante.
Quando minha mãe
apagava a luz do meu quarto, o peso gelado da escuridão sufocava minha frágil coragem
despertando angústias adultas no menino.
Noite após dia, noite
após dia, naquela hora eu pensava que iria morrer durante a escuridão, então
não fechava os olhos até a janela mostrar o fim da noite. Medo, puro medo. O
medo detesta os tolos. Enquanto isso a vida ia se enfeitando de mortos.
Nesses momentos de
medo, eu almejava asas. Asas que me levariam à claridade, asas acelerando o
tempo, asas explodindo o breu. Eu ia para a janela, mas os pássaros da noite
não se deixavam ver.
Espero que minhas filhas,
ao se tornarem adultas, que não sejam como a maioria, não acordem em meio ao
sonho bom. Apenas os egoístas acordam em meio ao sonho bom. E eu que não posso
afirmar que sonho, o que me resta?
Vivo prestes a chorar. Na verdade, acredito ter
desenvolvido uma maneira muito particular de chorar, sem lágrimas, sem
soluços...Sofrer não purifica a alma, não purifica nada.
Os urubus e os quero-queros os únicos seres
que sabem sofrer. E por saber não sofrem. Eles não envelhecem.
Meus pais formavam a
ilha de segurança e solidão onde desfilei minha vida até a adolescência.
Segurança por que nunca o amor esteve ausente e solidão por que a proteção
isola. Amigos, se haviam, eram poucos e apareciam de vez em quando. Não que eu sentisse
falta de mais alguém, muito pelo contrário, curiosidade apenas. Hoje eu entendo
e sinto falta. Proteção implica
tristeza? Seria, quem sabe, minha prematura percepção de uma tristeza
intrínseca?
Olho para o céu e não
percebo nenhum urubu solitário.
Chegam jornais,
livros, revistas, é necessário ler tudo e tentar escrever algo original. Do que
é lido extraio questões. Não faço julgamentos mas, apenas os amigos podem me
decepcionar. Desconfiar sem dar certeza é uma arte que, confesso, gosto de
praticar. Silêncio é o imperativo do meu bem estar. Só ou acompanhado.
Às vezes chego a temer
pelos dias de minhas filhas, elas repetem minhas preocupações e meus medos.
Ainda ontem Luísa perguntou o que fazer para deter o pensamento.
Afasto um pouco esse
medo quando percebo que ela trata melhor suas dúvidas, bem melhor do que eu.
Verbaliza, fala comigo, questiona. Eu as guardava em meu quarto, em meus
pensamentos.
Thamara, criança, a
caminho da praia:
"-Pai, eu não
quero te perder, quando você ficar velhinho, bem velhinho e você morrer...eu
vou guardar as suas fotos."
Equilibrando na
fronteira entre o riso e o choro, abracei-a com o ímpeto juvenil que ainda me
resta na expectativa que ela mantenha essa naturalidade.
Prainha é a praia que
frequento no Recreio dos Bandeirantes, é lá que encontro Chiquinho, ele tem uma
companheira mas ainda não fui apresentado, um urubu que habita o lugar.
Raramente voa, costuma andar entre os frequentadores e tem por hábito roubar
uma sombra, de cadeira ou barraca, pouco importa. Às vezes, quando o termômetro
bate nos quarenta graus, cansa suas asas num vôo até o Parque da Prainha e se
demora numa chuveirada. Volta renovado, “outra pessoa”.
Dia desses enquanto
ele pegava comida em minhas mãos trocamos algumas idéias. Por que ele andava,
podendo voar? E por que eu tinha que andar se tanto queria poder voar?
Ele riu, balançou seu
pescoço pelado e sem dizer nada foi até a beira do mar. Ficou um tempo por lá,
ele adora isso.
Ao voltar pediu que
fosse buscar um coco gelado. Obedeci.
Assim que o canudo
roncou avisando o fim próximo:
-Quer?
-Não, obrigado.Sei que
minha memória não é lá grande coisa, mas você está me devendo uma resposta.
-Você é tão
engraçado! Mas vamos lá, acompanhe.
Atenção porque o bagulho é profundo. Dois pontos. Faço questão de dizer dois
pontos para o interlocutor perceber a metafísica da coisa. Agora vai. Dois
pontos. você já ouviu dizer que querer é poder? Claro que já.Pois é a maior
tolice, a prova viva ora me ouve. Quem falou isso a primeira vez foi um tio
meu. Sou a prova viva, eu quero andar e ando. Você...você só sabe
tergiversar...tergiversar. Tergiversar e falar.Tudo precisa ser dito, muito
barulho, muito barulho não leva a lugar algum.Já me viu gritando, cantando? Não
, claro que não. E tergiversando? Hein...hein? Tergiversando, dois pontos. Dois
pontos porque tergiversar não é profundo. Me acompanha?
Você quer voar? Não
queira. Bem que uma risada seria adequada nessa altura, concorda? Mas não farei
isso, pelo menos neste instante.
Até amanhã. Melhora o rango, s’il vous plaît. Beijos na
Luísa e na Thamara. Fui.
Dito isso retornou à beira do mar. Permaneceu
por lá dez minutos, marquei no relógio. Voltou naquele passo elegante dos
urubus, ao passar por mim lançou um olhar de desprezo misturado com ironia.Não fosse
Chiquinho um urubu...ah Chiquinho...ah Chiquinho...
Logo parou, em seguida
num vôo rápido e quase rasteiro alcançou a barraca da Tia que aluga cadeiras e
barracas. Dali até o bolo que repousava, oferecendo-se, sobre o prato, foi um
pulo.
Levou-o no bico e
deliciou-se, sem alarde, sobre uma pedra. A tia viu. Sorriu.
No silêncio, a única possibilidade de não haver
fingimento?
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