domingo, 3 de março de 2013

Hans, o banto


Léo Almeida

Contava eu, ao meu amigo Castro, as convenções que a novíssima crítica imbecil, com cheiro de mofo, prega na gente, quando me lembrei de relatar-lhe as peripécias de um conhecido meu. Tal lembrança me caiu na ponta da língua por conta de uma sua infeliz observação que muito me irritou: dizia-me ele que na formação do povo brasileiro havia um quê de preconceito para com os germanos. Ora, ora, ora. Pois não é que o Castro lembrou-me, e muito, uma figura singular da academia que costumava pregar a mesma idéia estapafúrdia? A menção a uma suposta germanofobia do brasileiro remeteu-me a esse folclórico pensador, autor de proezas fantásticas, contadas nos salões das casas do saber, e sobre quem não recai essa pequena história. Meu protagonista é outro e é com ele que passo a gastar meu verbo agora. Hans era afro-descendente (o que quer dizer, caro leitor, em bom (ou mau?) português, que Hans era negro para alguns, preto para outros, retinto para uma parte, framenguista para outra, tição pros basbaques, favelado para aqueles que atiram ovos podres da janela, bandido para esses, sarará para um bando, mano para outro, mulambo pro pessoal do Cansei, enfim, a verdade era que o menino Hans era afro-descendente, apesar do nome tipicamente alemão), pai nigeriano, mãe baiana de Santo Amaro da Purificação, terra de Canô e Caê, nascido no Hospital de Base, em Brasília, no longínquo ano de 1973. Corria no seu sangue a nobreza e a vulgaridade de antigos nobres e vassalos africanos, de escravos e reis de africabrasilis. Hans Nduka Olumayowa Santos era o seu nome estampado na certidão do Cartório do 1º. Ofício, Setor Comercial Sul, Brasília, Distrito Federal. Pai desconhecido, mãe doméstica. Como testemunhas o nome de Raimundo Nonato, brasileiro, casado, natural de Olhos d’água das cunhãs/MA, operário da construção civil, e Olindina Freitas, brasileira, casada, natural de Montes Claros/MG, do lar. Essas duas personagens periféricas da história de Hans terão suas vidas marcadas por encontros sucessivos. Olindina e Raimundo tornarão a se encontrar, talvez noutra história que eu componha, talvez só na menção destas palavras, mas com certeza aqui, na Certidão de Nascimento de nosso herói. Batismo não houve. A icterícia dos primeiros dias transformou-o num bebê magro, pele e osso simplesmente, quase sem recheio, amarelo-vilão-de-Frank-Miller-em-Sin-City, que o chá de picão, bebido às escondidas por conta da censura médica a esses remédios populares, apagou, trazendo de volta o negrume epitelial genotípico. Castro, entre uma baforada e outra, perguntou-me como o pai de Hans veio parar no Brasil. A memória e a invenção me dizem que Ngala Olumayowa chegou às terras tupiniquins como imigrante clandestino num navio de bandeira grega, o Atenaikos, que transportava leite em pó para os pobres da Bahia, doação de gentis governos europeus. Em Abrolhos, repleto de sede e leite em pó, descoberto entre sacos de batata por dois velhos marinheiros mal encarados que se masturbavam mutuamente no porão, esteve a ponto de ser jogado ao mar, como acontece com muitos de seus conterrâneos que tentam chegar ao novo velho mundo, mas a intervenção calorosa de um jovem médico alemão de nome Hans, que atendia à tripulação do Atenaikos, salvou-o de banhar-se em água salgada e ele veio, como um rei nagô de dentes brancos e olhar esperançoso, repousar num velho casarão no centro de Salvador, e foi ali, entre iguais de línguas diferentes, que ele viu, amou, engravidou, traiu e disse adeus a Maria de Lurdes Santos, a Lurdinha, empregada doméstica de um funcionário graduado da prefeitura de Salvador que, ao descobri-la grávida, após meses de uma tentativa vã de ocultar a barriga crescendo, temendo que algum de seus preservativos houvesse falhado, botou-a no olho da rua, para evitar complicações trabalhistas e paternalistas, enquanto ela, com a mesma nobreza nagô de seus ancestrais, uma mão na frente e outra atrás – perdoem-me a rima, mandava-lhe tomar no meio do olho do cu do toba, com o sotaque acentuado e cantado do Pelô. Às vezes me parece ainda ouvi-la berrar da porta da casa do Rio Vermelho: Seu Jorge, o senhor vá se foder, viu? Aproveite o feriado e rasgue seu furico. Sim, era feriado em Salvador, era 2 de julho. Lurdinha era assim, pavio curto, sem papas na língua, ousada e corajosa que só ela, e foi com essa ousadia e coragem que, decisão tomada, arrumou os paninhos de bunda e seguiu pra Brasília em um dia chuvoso de um ano de chumbo. Bucho cheio, rebentando, pariu seu filho na noite de 17 de setembro de 1971. Hans veio ao mundo esperneando como bom baiano, berrando como bom brasileiro. Nesse mesmo dia, no sertão da Bahia, morria Carlos Lamarca. Foi assim que o menino veio ter à terra brasílica. Castro, curioso que só ele, perguntou-se sobre o fim do pai de Hans. Por onde anda o sujeito? Ainda em dúvida quanto ao fim dessa personagem, respondi-lhe que Ngala sumiu num caminhão que rumava para Rondônia ou num catamarã que seguia para Fernando de Noronha. Confesso que eu não sei o que aconteceu com o pai desse amigo. Alguns afirmam tê-lo visto subir num ônibus que partiu para Maceió, outros juram tê-lo visto brigando num BaVi e, ferido na cabeça, levado inconsciente para o Hospital, de onde partiu sem rumo e sem memória e não se teve mais notícia dele. Presume-se que tenha voltado para a Nigéria ou tenha sido jogado ao mar com seus dentes de nobre linhagem africana. Outro dia me disseram que Ngala virou personagem num romance de João Ubaldo Ribeiro e que, culto e erudito que só ele, berra a plenos pulmões que sabe inglês melhor que qualquer doutor branco. Mas não posso confirmar essa versão, pois ainda não li João Ubaldo. O que lhe garanto, Castro, é que o menino cresceu nas ruas, jogando bola, batendo tambor, fazendo música, com uma delicadeza que contrastava com as rudes relações pessoais da cidade satélite em que morava. Aos 13 anos, após um troca-troca ofegante, surdo e sujo, lúbrico, com Aleixo, o filho de Dona Zilá, costureira paraibana cujo marido era fiscal de obras da administração regional de Ceilândia, o pequeno Hans sentiu-se arrebatado e descobriu-se homossexual. Não eram à toa suas ereções diante do professor Eduardo de Educação Física nas aulas do Centro Educacional 24. Nem era por acaso que adorava andar em pé, em ônibus lotado, só pra sentir o roça-roça com outros meninos e homens que se aproveitavam da situação para tocarem-se impunemente. Foi numa dessas viagens lotadas, Ceilândia/W3 Sul, que o menino conheceu, primeiro no toque, depois no sentido bíblico, o corpo do Senhor Ezequiel Carlindoga. Ficaram muito amigos. Na verdade, pela falta de assunto e ignorância, Hans percebeu-se fruta, baitola, fresco, viado, e dar o cu e chupar rola, valei-me Freud, passou a ser o seu princípio de prazer. Era feliz, muito feliz. Ganhava presentes do senhor Ezequiel, passara a freqüentar os cultos da igreja evangélica onde o Pastor Carlindoga pregava a palavra do Senhor e onde, muitas vezes, o pequeno Hans sentiu a língua do senhor. Lurdinha era uma mãe compreensiva e, apesar de todas as humilhações que sofria por conta da homossexualidade do filho, sempre apoiou o pequeno Hans em sua opção. Ser baitola é ser gente, gente! Baitola é filho de Deus como todo mundo, minha gente! Ela berrava àqueles que a censuravam por não reagir com violência aos “maus costumes” de Hans. Deixem meu menino em paz, é dele, dá pra quem quiser, e ninguém tem nada com isso, apelava. Ninguém tem realmente nada com isso, nem eu que escrevo essa história. Quem sou eu? Deixemos Castro e seu amigo por instantes, pois um valor mais alto se alevanta. Ora, ingressou nessa narrativa um negro, que é gay, uma mulher que é empregada doméstica, mãe solteira cheia de coragem, um imigrante clandestino, um branco alemão bonzinho, marinheiros punheteiros, uma população pobre e periférica, um guerrilheiro morto, um narrador ágil e bem humorado, um texto cheio de intertextos, que mais falta neste tecido de letras para uma representação por cotas da sociedade brasileira? Qual o percentual necessário de mulheres e gays e negros e meninos num texto literário de autor brasileiro? Ah, dirão que este conto, escrito por autor masculino, reforça o estereótipo e valida os preconceitos de classe, de gênero, pois quando um negro surge na literatura, é ladrão, ou gay, que o diga Adolfo Caminha e seu Amaro. E mulher? Ou ela é prostituta, ou dona de casa, ou doméstica, ou gostosona, ou tudo isso junto. Essa história de Hans só faz reforçar lugares-comuns perniciosos e preconceituosos e todos os osos ruins que a nossa literatura vende ao leitor burrinho, que não sabe julgar, discernir, separar, criticar. É por essas e por outras que se faz necessário dissecar os textos publicados ultimamente, parti-los fibra por fibra, identificando sua anatomia preconceituosa. Onde estão os negros na literatura contemporânea? Berra-se! Cadê as mulheres? Vocifera-se! Este é, por acaso literário, um país de brancos e ricos e classe média? Reverbera-se! Será que apenas de Capão Redondo vem uma literatura que represente a sociedade brasileira? A sociedade brasileira é Capão Redondo? É Zona Sul? É a cidadezinha provinciana de onde partem raparigas e rapazes sonhadores e fúteis e cheios de idéias ultrapassadas que julga modernas? Exaspera-se! Pau nesses escritores, estabeleçamos uma regra, uma camisa de força, uma cartilha social e estética que esteja totalmente baseada num modelo estatístico confiável. Um modelo que esteja assentado em variáveis coerentes e que se possa finalmente escrever literatura com percentuais adequados de mulheres cultas e burras e gostosas e feias e sabonete-Araxá e narradoras. Um modelo que prescreva o nível ideal da voz feminina e masculina no mercado editorial brasileiro das grandes editoras. Estamos às voltas com uma espécie nefasta de neo-zdanovismo. Muita estatística e pouca cultura os males do Brasil são. Façamos o seguinte: Hans continua negro, mas não é gay, ele é um sedutor tremendo. Desenhemos um negro de sucesso, pois, mesmo improvável num país como este, eles existem aos montes. Continuemos nesse novo simulacro, respire fundo, suspenda a descrença, é outra a história, siga-me. Sua mãe (de Hans, não tua, caro leitor burrinho), depois de muita luta honesta, conseguiu montar uma pequena empresa de limpeza e conservação e conquistou alguns contratos com órgãos públicos, que lhe renderam uma boa quantia e contatos, esses mais rentáveis que aquela. A coisa fluía a passos lépidos (quem fala lépido hoje em dia? Só mesmo um escritor pedante e metido a besta) e D.Lurdinha investiu na educação do filho. Hans ingressou na Universidade de Brasília para o curso de Medicina e, orgulhoso como ele só, negou-se a submeter-se à seleção de cotas, por achar que seria – e foi – capaz de conquistar a vaga dispensando a seleção por critério de raça. Questão de ordem: os representantes do movimento GLS certamente sentiram-se ofendidos pela mudança de opção sexual de Hans, isso demonstra preconceito do autor e é inadmissível, disseram-me. Como pode um autor submeter-se ao patrulhamento de quem quer que seja? Alguns representantes do Movimento Negro Unificado sentiram-se traídos pelo fato de Hans não validar a ação afirmativa do processo de cotas e, ao assumir-se de forma egoísta, não pensar naqueles que dependem desse instrumento de pagamento da dívida que a sociedade brasileira tem para com os seus negros. Terrível. A representação de Lurdinha como mulher vitoriosa num mercado machista de trabalho fez com que o texto ganhasse em importância como um instrumento de valorização da mulher que se revela um ser pensante e produtivo, coisa que, para muitos autores, não é. Mas o que não contei ainda, meu amigo Castro, é que Dona Lurdinha desenvolveu alguns hábitos muito excêntricos: ela costuma produzir ovos podres e jogá-los, da janela de seu duplex na 112 sul, nos carros que passam na quadra. Hans se diverte colocando partes de cadáveres nas mochilas de seus colegas brancos do curso de Anatomia. Ultimamente anda fechado, muito calado, casmurro, converteu-se ao catolicismo, esqueceu o Senhor Ezequiel Carlindoga que, dizem, suicidou-se na quarta-feira de cinzas e abandonou as sessões no Centro Pena Branca do pai Tonico de Xangô, para alegria de sua mãe, que há tempos havia se convertido ao pentecostalismo e rejeitado seu passado bantu. Dos males o menor, ela dizia nas reuniões sociais, melhor um filho papista e comedor de hóstia do que um macumbeiro que faça despacho com frango preto e farofa, não é mesmo? Ainda hei de vê-lo chutando estátua de santas na televisão, pois o sangue de Jesus tem poder, ela dizia. Pronto, falei de sincretismo, de alta sociedade, de alunos brancos nas universidades federais, mas ainda faltam negros nessa história. Pois que venham. Hans conheceu Padre Jacó, um judeu etíope convertido ao catolicismo, e os dois sofreram uma atração imediata. Hans projetava a figura paterna no sorriso branco do amigo de batina, e este, reconhecia no jovem Hans a beleza de um Tadzio negro. Eram óbvios, para Hans, os olhares famintos que Jacó lhe enviava durante, antes e depois das missas dominicais. Evidente o clima de sensualidade que sentia quando, na casa de Jacó, discutiam poesia e religião, ouvindo a 5ª.de Mahler e isso, ao invés de constrangê-lo, excitava-o bastante. Relembrou o que sentia algumas páginas atrás, antes do texto ser mudado, e sentiu-se de novo um fresco, baitola, viado, e retribuiu ao olhar do padre com um sorriso de orgulho e virilidade nigeriana que se afogava na malha da letra, na narração caótica de um autor perdido entre representações e estatísticas. Castro, me perdoe, mas isso está complicado. Ah, leitor, quer saber? Que se fodam Lurdinha, Hans, Jacó, negros, judeus, gays, heteros, padres, brancos, católicos, ricos, pobres, a sociedade brasileira, a crítica literária e, só para não perder tempo, que se foda você também. Fazer literatura está cada dia mais inviável. Tem mais não. Chega!

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