quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Um Conto de Luíz Horácio:APENAS OS IDIOTAS CONSEGUEM EXPLICAR O AMOR

Luíz Horácio



para Rejane


Quando ele veio trouxe uma mala velha cheia de livros. Naquele mesmo dia enfiou-a embaixo da nossa cama. Todas as manhãs colocava a mala em cima da cama e ficava a olhar e chorar em meio às páginas dos livros. Um dia tomei coragem e perguntei a razão daquilo e ele respondeu que chorava pelas pessoas tristes que assim eram porque não tinham coragem de chorar. E chorou ainda mais, dia após dia, depois daquele dia.
Quando ele veio, também trouxe consigo uma outra mala, não tão velha, cheia de CDS. Tinha de quase tudo, de jazz a bossa nova passando por MPB, samba e rock. Alguns ele costumava ouvir no carro, mas a maioria escutava em casa quando me mostrava e se entristecia por eu não gostar. Com a música ele não chorava, mas não parava de fazer anotações a cada disco que escutava. Dizia que as músicas acordavam lembranças e que tudo que escrevia resultava dessas recordações, por isso anotava.
Ele gostava de rir, agora eu sei que ele ria para encobrir a tristeza. E ele era triste por tantas coisas, um dia, a garrafa de vinho pela metade, me confessou que tudo o entristecia e que por isso pensava seriamente em se matar. Sei que foi feliz comigo, que foi feliz com o que eu podia lhe dar; não posso almejar mais do que isso. Em primeiro lugar, porque ele não me permitia outras ações, em segundo; porque ele era assim e mais tarde entendi o porquê de ele viver dizendo que as pessoas não mudam. Ele bem que tentava, mas não conseguia mudar.
Uma vez uma amiga o aconselhou a rezar e ele disse que não acreditava em rezas e tampouco em Deus.Como crer em alguém capaz de prometer uma vida eterna à uma criança e logo permitir que ela morra com pouco mais de dois meses de vida.
Anteontem, no começo da noite ele ligou o computador e me chamou.
-Sim.
-Gostaria que você lesse e me desse sua opinião.

Ele tinha acabado de escrever mais um de seus livros. Antes de ler tomamos uma garrafa de vinho.Depois, vim para o computador, ele sentou no sofá e mais uma vez começou a ler o Dom Quixote. Por volta das quatro da manhã terminei de ler o livro. Não sabia o que dizer. Ele dormia no sofá em minha frente, acordei-o.

-Leu?
-Li.
-Está bem escrito?
-Está.
-E da história, você gostou?
-Primeiro quero saber se você gostou? Você gosta das histórias que cria?
-Gostei, gosto.
-Mesmo com tanta dor, tanta morte?
-A morte é o apogeu da dor. Mas dói, escrever me dói tanto, meu amor, me faz sofrer tanto,eu me vingo de mim, eu me vingo...
Vivo a me perguntar: será que um dia conseguirei me consertar?, às vezes me canso de mim...queria tanto ser mais útil para aqueles que precisam de mim, principalmente meus filhos. Preciso escrever um livro sem defeitos. E afinal, você gostou?
-Preciso ler de novo.
Mas saiba que essa insatisfação não é sua apenas. Eu poderia fazer muito mais se não fosse tão desorganizada e até certo ponto "irresponsável". Por certo, poderia dar uma condição de estabilidade futura muito melhor a meu filho, uma qualidade e vida melhor a meu pai e mais tranqüilidade a todos que me cercam.
Não seja tão duro com você.
Sofra, porque isso é inevitável, sempre podemos fazer melhor. Sinal de consciência, mas não tanto que aniquile com sua felicidade. Por favor!Por que eu dependo dela.
Seja um pouco mais modesto. Aliás, não. Quem sabe possa escrever o tal livro perfeito, afinal você é você.

-Se você vai precisar ler de novo é sinal que está ruim, um livro bom não precisa de mais de uma leitura para ser entendido.

Levantou e saiu. Fui dormir.
Quando acordei ele estava escrevendo.
-Deixa eu ler de novo?
-Deletei.
-Você está brincando! Tinha umas frases tão bonitas, pena que não anotei.
-Agora é tarde.Estou escrevendo outro.
-Sobre o que é?
-É a história de um homem que tinha dois medos; de amar e de morrer.

Eu sabia que se tratava da história dele. Afinal de contas um homem que se separa cinco vezes é porque tem medo de amar. Se bem que às vezes fico em dúvida. Talvez ele não tenha medo de amar, o que ele faz é assustar com seu jeito de amar.
Lembro do dia em que ele me revelou que se descobrira apaixonado por outra mulher, mas isso não significava que precisasse deixar de me amar. Pedi que explicasse e ele contou que uma antiga colega de faculdade tinha revelado que sempre prestara atenção nele, tinha um interesse especial. Ele estava comigo e me amava, nunca tive dúvida, mas ouvir ele dizer que a ex-colega também lhe despertava interesse, não me fez muito bem. Tentei deixar pra lá, afinal de contas desde o começo de nossa relação me convenci que o que ele mais precisava era de amor e atenção.Nunca vi alguém tão carente e solitário quanto ele. Impressionante! Ele precisava de amor e atenção das pessoas que ele escolhia, não era o amor de quem precisava amá-lo. Coisa de enlouquecer. Não, não foi nem uma nem duas vezes que cheguei a pensar que ele estava ficando louco. Ao mesmo tempo me perguntava como um louco conseguia ser um amante quase perfeito. Louco ou quase louco não importava, eu o queria ao meu lado. Mas eu sofria.
-Querido, vou te amar pra sempre, no que depender de mim essa relação nunca terá fim.
-Deixar de te amar...só se eu enlouquecer.
-Mesmo assim, continuarei a te amar, te amarei feito uma louca.

Ficamos juntos um longo tempo e agora tenho que admitir que foi um erro. A pior escolha que uma mulher pode fazer é essa, viver com um escritor; estão sempre insatisfeitos. A ele tudo incomodava, nunca entendi a facilidade com que chorava, para que serve um escritor, por que não escrevem coisas só para a gente se distrair, por quê? Ele precisava da tristeza, da dor, para escrever.
Quando ele veio me trouxe um medo: que a cada mulher inteligente e culta que conhecesse, seria capaz de amar, afinal de contas tinha me dito que entendia ser amor sinônimo de liberdade. E de vez em quando se punha a falar das ex-mulheres;o que incomodava não eram as lembranças das fartas frustrações de seus relacionamentos e sim a lembrança/saudade dos momentos bons vividos com aquelas mulheres.Por que não as esquecia por completo? É assim, as coisas ruins existem para nos fazer lembrar das coisas boas, eu não suportava, embora ele estivesse aqui, comigo.Sempre muito carinhoso. De tanto sentir medo escrevi um livro de poesia, todas sobre o mesmo tema. Uma é esta.
Acho que é impossível mascarar o medo
...o medo é uma merda...mas
De todos os medos que me castigam
Tem um que é especial
Ele se fantasia
Com as cores da crueldade e da compaixão
É mais triste que o medo da morte
Mais frio que o medo da noite
Ou mais alienante que o sonho da sorte
É o medo louco de não ser ninguém
de virar mendiga
Patética criatura do chão
Onde só fotógrafos sádicos
Conseguem focalizar poesia
Em tamanha degradação


Quando ele veio trouxe um vazio imenso que conseguimos amenizar, tinha dias que ao vê-lo tão triste me dava vontade de queimar aquela mala, parecia que as dores que o castigavam estavam todas ali. E ele fazia questão de renová-las.
Hoje pela manhã ele se foi.
-Por quê?
-Só tenho repetições a lhe oferecer, você merece mais.
-Mas que pretensioso, quem você pensa que é para dizer do que preciso ou deixo de precisar?
-Não sei de mais nada, tenho uma certeza apenas; tudo é muito triste. Em certos dias quase tive certeza do meu amor por você.
-E agora, agora...que dia é hoje? Dia da incerteza? Então quem sabe amanhã você tornará a me amar?
- Não estou brincando. Faz tempo que o amor é só mais um pedaço do meu sofrimento, cansei.
-Porra, mas que merda de amor é esse que opta pela separação?
-Esse é o meu amor, um jeito de amar que me desagrada, mas basta!, apenas os idiotas conseguem explicar o amor.
Hoje pela manhã ele se foi, não levou a mala.
Quando ele voltar...............


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Luíz Horácio, Jornalista, Escritor, Professor de Literatura, Porto Alegre. Autor dos romances "Perciliana e o Pássaro com Alma de Cão" (ed. Conex) e "Nenhum Pássaro no Céu" (ed. Fábrica de Leitura). Já meu amigo, sem o conhecer. Escreve pro Piauinauta da fronteira do sul do país. E o Piauinauta atravessa o Brasil. Foto: Paraty, Edmar.

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