quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

O HOMEM TRANSFERIDO

Aderval Borges

Próximo da virada do ano, sinto-me o homem transferido, conduzido para lá
e para cá, sem autonomia, dependente das pessoas e das circunstâncias.
Há uma semana a situação era outra. Andava pelas ruas de Sampa sob devaneios libertários. Pensava no quanto são pouco importantes para a esquerda de hoje os únicos marxistas que para mim valem a pena serem conservados após o óbito da idealizada revolução que prometia pôr o planeta nos eixos: Rosa de Luxemburgo e Antonio Gramsci. Pensamento dialético, para Rosa, era, sobretudo, ter respeito pelas convicções contrárias. Enaltecia a dúvida, o espírito crítico (e autocrítico) constantemente alerta, a radical tolerância às diferenças, para evitar a radicalização sectária e revanchista que mais tarde conduziu os países sob governos marxistas a regimes de exceção mais bárbaros do que aqueles que seus dirigentes haviam combatido. Gramsci foi mais longe. Enquanto para a plêiade marxista tudo o que importava era a política – até um peido era um ato político –, para ele a função
da revolução era meramente aprimorar o processo civilizatório, para propiciar sistemas mais justos. Foi o primeiro comunista a aceitar o jogo democrático. Mas fazia um alerta: se a política prepondera em uma nação, é porque as coisas não vão bem.
Estas foram minhas últimas divagações, quando o farol verde para a passagem de pedestres se abriu. Ainda olhei para conferir se os carros tinham mesmo parado. Quando estava quase chegando ao canteiro central da avenida, a senhora à minha frente gritou "cuidado". Nos milésimos de segundos seguintes fui "transferido" de onde estava para uns quatro metros adiante, sobre o jardim do canteiro (o que me salvou a vida), com os seguintes resultados: uma perna quebrada (e os músculos gravemente feridos), um braço com múltiplas fraturas, um rim bastante ferido, um olho com descolamento do vítreo (causa interferências na imagem, com a sensação de mosquinhas rodopiando o campo de visão) e escoriações até na cabeça do pau. Claro que Rosa, Gramsci e os esquerdistas boçais do nosso tempo nada tiveram a ver com o que aconteceu. Apenas mais um motoboy irresponsável que, num ato político homicida, passou a toda pelo sinal vermelho.
Daí por diante, vivi o purgatório danteano. Por desleixo, não tenho plano de saúde. Fui transferido de hospital para hospital, só conseguindo passar pela cirurgia – que deveria ser de emergência – quatro dias depois. Nesse período, estive nos cenários mais sórdidos desse nosso medieval sistema público e privado de saúde. Passei por todo tipo humilhações e contaminações possíveis. Respondi a dezenas de questionários idiotas. Usaram-me como caso para aula prática para alunos de Medicina. Nenhuma das minhas solicitações foi atendida e nenhuma das minhas dúvidas respondidas. Sobrevivi graças ao empenho desesperado da minha mulher.
Estou bem? Resignadamente, respondo a todos que sim. Vou dizer o quê? Meus visitantes estão tão eufóricos com a virada do ano, apesar dos auspícios da crise, e não gosto de jogar merda no pirão de ninguém. De vez em quando o bostinha que quase me matou telefona. Liga choroso para saber como estou. É evangélico. No final da conversa, sempre deseja que Deus fique comigo. Ao que respondo da mesma forma: muito agradecido, mas prefiro o meu Deus, do qual não cobro nada, nada me cobra, respeita os sinais de trânsito e preza a vida das pessoas.
Para finalizar da forma mais idiota possível, conforme a etiqueta de fim de ano, desejo um bom 2009 para todos. Da minha parte, para o ano que entra e para os demais vindouros, ficarei com um olho no gato e o outro no peixe. Melhor dizendo, um olho na vida e o outro no trânsito.
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Aderval Borges é poeta paulistando e foi encontrado no espaço sideral, depois deste impulso motoboysta, por Durvalino.

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