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Depois de ter visto pela terceira e melhor vez o filme Doutor Fantástico, de Stanley Kubrick (Dr. Strangelove or How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb), cheguei à conclusão de que os artistas, os criadores, os fantásticos homens de invenção das artes sempre interpretam os fenômenos históricos com um nível de acerto tremendamente superior aos historiadores, sociólogos, antropólogos, economistas ou intelectuais de plantão que existem aos montes por aí. Estes mesmos que a toda hora lançam teses, ensaios, livros e demais ferramentas de resultados questionáveis e sempre superáveis a cada nova tendência, a cada novo filósofo, nova escola, moda, enfoque, foco, argh!
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As ferramentas de Kubrick são a ironia e o humor negro e cáustico. O suficiente para desbancar e debochar da filosofia beligerante que imperou a partir da segunda metade do século XX, após a Segunda Guerra. O mundo fôra, então, repartido em bloco ocidental liberal capitalista e bloco oriental soviético comunista, gerando a monstruosidade conhecida como Guerra Fria, palco de fabulosas tragédias que ceifaram milhares de vidas humanas enquanto durou (inclusive muitos brasileirinhos patriotas, pois não, ou você já esqueceu a ditadura dos militares em todo o continente sul-americano?).
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O começo do filme já e uma piada: um coronel idiota do Reino Unido (o genial Peter Sellers), numa base militar da OTAN abandona metros e metros de impressos de um gigantesco computador analógico para atender ao telefone, onde um general enlouquecido comunica que deflagrou o holocausto nuclear. Os B-52, então, a princípio incrédulos, passam a executar o terrível “Plano R de Romeu”, apontando suas ogivas nucleares para alvos primários e secundários da Cortina de Ferro, do outro lado do mundo.
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Caos e desordem. O humor fino de Kubrick nos arranca gargalhadas nervosas, explosivas, imprevisíveis – tamanho é o non sense das sequências na tela. A cena do general vivido por George C. Scott saindo do banheiro do que parece ser um quarto de motel para atender a outro telefonema às 3 da manhã (acompanhado de uma deliciosa secretária só de calcinha e sutiã que lhe estende o fone) é impagável; do outro lado da linha um funcionário do Pentágono lhe comunica o iminente bomb crash e o convoca para uma reunião de emergência com o presidente da república (também vivido por Sellers). Em trajes menores, pressionado pela amante para não ir, Scott argumenta que o Departamento de Estado “não pára nunca” e sai como se fosse para mais uma reunião trivial, quando, na verdade, se trata do destino de toda a humanidade a ser resolvido nos próximos e exíguos dezoito minutos!
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O clima de caos total ante a loucura que os telefones vermelhos não conseguem resolver; o pânico do presidente vivido por Sellers; o aspecto bufão do premier soviético; a cena em que o coronel/Sellers tenta ligar para a Presidência da República de um orelhão e está sem dinheiro, forçando um soldado a atirar numa máquina de Coca-Cola para conseguir algumas moedas – tudo no filme encaminha o espectador para um clima de farsa total – e o que é pior: tudo isso, durante décadas, sempre esteve na iminência de acontecer, de fato, no mundo.
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O que mais impressiona é que Stanley Kubrick fez este filme genial em 1964, ou seja, no exato momento em que estes fenômenos todos estavam ocorrendo – a crise dos mísseis em Cuba, a guerrilha de Che em lationoamérica, o envio maciço de tropas para o Vietnam, os testes nucleares em ilhas paradisíacas, a presença bela e tétrica do cogumelo atômico, os regimes de direita nas republiquetas bananas ad nauseam...
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O niilismo debochativo de Kubrick subverte qualquer análise aparentemente profunda que os filósofos querem imprimir a uma época que (parece) ainda não passou, de loucura, caos e bestialidade humana. Conseguiremos ainda nos destruir totalmente, como quando no tempo recente em que a vida no planeta era quantificada em megatons? Sem que haja resposta, vejamos de novo este fabuloso filme. Corrida rápida às locadoras e feliz revival.
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Duda voltou ao Piauinauta enciontrado numa dobra do tempo. À locadora, crianças, Eu vi pra mais de dez vezes.
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