quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

COMEÇAR DE NOVO





Eu tinha medo da escuridão


Até que as noites se fizeram longas e sem luz


Eu não resistia ao frio facilmente


Até passar a noite molhado numa laje


Eu tinha medo dos mortos


Até ter que dormir num cemitério


Eu tinha rejeição por quem era de Buenos Aires


Até que me deram abrigo e alimento


Eu tinha aversão a Judeus


Até darem remédios aos meus filhos


Eu adorava exibir a minha nova jaqueta


Até dar ela a um garoto com hipotermia


Eu escolhia cuidadosamente a minha comida


Até que tive fome


Eu desconfiava da pele escura


Até que um braço forte me tirou da água


Eu achava que tinha visto muita coisa


Até ver meu povo perambulando sem rumo pelas ruas


Eu não gostava do cachorro do meu vizinho


Até naquela noite eu o ouvir ganir até se afogar


Eu não lembrava os idosos


Até participar dos resgates


Eu não sabia cozinhar


Até ter na minha frente uma panela com arroz e crianças com fome


Eu achava que a minha casa era mais importante que as outras


Até ver todas cobertas pelas águas


Eu tinha orgulho do meu nome e sobrenome


Até a gente se tornar todos seres anônimos


Eu não ouvia rádio


Até ser ela que manteve a minha energia


Eu criticava a bagunça dos estudantes


Até que eles, às centenas, me estenderam suas mãos solidárias


Eu tinha segurança absoluta de como seriam meus próximos anos


Agora nem tanto


Eu vivia numa comunidade com uma classe política


Mas agora espero que a correnteza tenha levado embora


Eu não lembrava o nome de todos os estados


Agora guardo cada um no coração


Eu não tinha boa memória


Talvez por isso eu não lembre de todo mundo


Mas terei mesmo assim o que me resta de vida para agradecer a todos


Eu não te conhecia


Agora você é meu irmão


Tínhamos um rio


Agora somos parte dele


É de manhã, já saiu o sol e não faz tanto frio


Graças a Deus


Vamos começar de novo.


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Poema anônimo, que circula na internet, que fala de uma enchente na Argentina. Resurge na enchente de Santa Catarina, onde as trágicas imagens fazem o visual do poema. Garimpado por Simão da Casa Lima Barreto.

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