Edmar Oliveira
Acabei de ler o livro da Luciana Hidalgo. Literatura de Urgência – Lima Barreto no Domínio da Loucura (Anablume Editora, SP, 2008, 250 pgs.). A moça mostra um conhecimento denso e consistente da obra e da vida do mestre dos inconformes. Partindo da literatura em que ele se faz na obra, desde o Isaías das Recordações, do Augusto e do Gonzaga da Vida e Morte, do Policarpo Quaresma, até ao Vicente do Cemitério dos Vivos, refazendo o Diário do Hospício. Faz um profundo apanhado do Diário e do inacabado Cemitério para mostrar mais urgência na literatura que o hospício poderia causar. Mas desenvolve um minucioso estudo de toda a obra, inclusive crônicas e peças avulsas publicadas na imprensa da época. Louvável o trabalho de pesquisa de Hidalgo. E um presente inestimável para nós, que queremos o Lima vivo.
Na síntese do pensamento do Lima ressoa a frase “Ah! A literatura ou me mata ou me dá o que peço dela”, justificando a urgência da literatura do mulato. O trabalho de Hidalgo é muito rebuscado, parece mais um trabalho de um acadêmico, historiador, sociólogo ou que mais. Não estou a desmerecer a jornalista, mas dizer que o aprofundamento é digno de um trabalho além do campo jornalístico. É da doutora em Literatura Comparada e Pós-doutora. Procura a construção mesma do conceito de “Literatura de Urgência”.
Portanto a competência dos comentários sobre o trabalho fica aquém das minhas possibilidades palpiteiras. É preciso um moço mais graduado que eu pra se levar a sério resenhar tal trabalho. Me deliciei com os detalhes das urgências literárias do Lima.
Mas encasquetei com se achar ressentimentos nas anotações limabarreteanas. E de que ele queria o reconhecimento para a entrada, pela literatura, nas elites. Não me soa assim.
Desconto se faça no meu pobre palpite. Mas acho que Lima se descobre implicante e não ressentido: “implico com três ou quatro sujeitos das letras, com a Câmara, com os diplomatas, com Botafogo e Petrópolis; e não é em nome de teoria alguma, porque não sou republicano, não sou socialista, não sou anarquista, não sou nada; tenho implicâncias”. Na minha terra, tem um verbo digno dele: “inticar”. Inticar é verbo do dialeto nordestino que pode ser traduzido como “troçar”, “caçoar”, “zombar”, “gracejar”, “implicar” ou algo semelhante, mas que para o vocabulário nordestino é tudo isso junto e muito mais ofender. É esse verbo que acho pertinente ao Lima. Implicar ofendendo. Arranhando a alvura dos compromissos formais da época.
Me parece que Lima não consegue viver o seu tempo. Não cabia nele. Ele estava colocado além do tempo, além das burrices, além dos borra-botas, dos poderosos da época. Todo o seu comportamento inviabiliza o seu existir. Isaias critica todo o entorno beletrista de então. Insuportável. Fica fora do Gonzaga em Augusto, para os dois se colocarem na contramão da mediocridade. Como se Lima e Barreto pudessem existir aos pares para suportar a realidade. No Policarpo consegue zombar de si mesmo de das idéias que sabia serem vistas como policarpianas pela elite de então. No diário do hospício já constrói Cemitério dos Vivos e se faz em Vicente um crítico dos donos da loucura com palpites certeiros sobre os erros de então. E também não cabe no meio dos pobres, do subúrbio, dos doidos: “isso aqui tá parecendo um colégio”, fez um doido no hospício criticando Lima e seus livros, numa parte bem humorada do Diário.
Lima não cabia no seu tempo. E tinha que fazer uma literatura de fora daquele tempo. Mesmo que usando todo o entorno local para ser universal. E a si também se colocava por fora do tempo. Quase um Garambombo, o invisível, personagem de Manuel Scorsa que se sente invisível por não ser levado a sério, Lima vai de bêbado e sujo pra Ouvidor ver a Belle Epoque passar. Inticava com tudo. Implicava ofendendo. Só se mostra ressentido no diário íntimo, porque não se consegue ficar tão longe de uma época vivendo nela, mesmo estando fora. Na intimidade do diálogo com o mundo em que teimava em viver. Mas no conjunto da vida e obra é um implicante, replicante que “inticava” com todo mundo.
E a síntese: “Ah! A literatura ou me mata ou me dá o que peço dela”. Acertou nas duas pontas: matou o mulato e lhe deu tudo que ele queria dela. Acho simples assim. O reconhecimento em vida seria o fim do Lima que todos admiramos. E um detalhe: o reconhecimento por Monteiro Lobato em vida foi porque o paulistano não tinha de conviver com Lima Barreto. Um dia lhe vendo bêbado e implicante não teve coragem de se apresentar. Lobato fez de conta que não conhecia Lima. Ele já estava lendo Lima Barreto no futuro...
Não discordo aqui da escrita de si como uma literatura de urgência, como constrói com maestria a Luciana Hidalgo. Mas me atrevo a acrescentar Lima Barreto no rol dos escritores do futuro, porque não se comportavam (com todos os sentidos) na sua época. E, assim, colocaria Lima na companhia de Sousândrade, Gregório de Matos, Quorpo Santo e Torquato Neto, só pra começar e sem comparar os talentos, que cada um tem o seu cada qual.
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Acabei de ler o livro da Luciana Hidalgo. Literatura de Urgência – Lima Barreto no Domínio da Loucura (Anablume Editora, SP, 2008, 250 pgs.). A moça mostra um conhecimento denso e consistente da obra e da vida do mestre dos inconformes. Partindo da literatura em que ele se faz na obra, desde o Isaías das Recordações, do Augusto e do Gonzaga da Vida e Morte, do Policarpo Quaresma, até ao Vicente do Cemitério dos Vivos, refazendo o Diário do Hospício. Faz um profundo apanhado do Diário e do inacabado Cemitério para mostrar mais urgência na literatura que o hospício poderia causar. Mas desenvolve um minucioso estudo de toda a obra, inclusive crônicas e peças avulsas publicadas na imprensa da época. Louvável o trabalho de pesquisa de Hidalgo. E um presente inestimável para nós, que queremos o Lima vivo.
Na síntese do pensamento do Lima ressoa a frase “Ah! A literatura ou me mata ou me dá o que peço dela”, justificando a urgência da literatura do mulato. O trabalho de Hidalgo é muito rebuscado, parece mais um trabalho de um acadêmico, historiador, sociólogo ou que mais. Não estou a desmerecer a jornalista, mas dizer que o aprofundamento é digno de um trabalho além do campo jornalístico. É da doutora em Literatura Comparada e Pós-doutora. Procura a construção mesma do conceito de “Literatura de Urgência”.
Portanto a competência dos comentários sobre o trabalho fica aquém das minhas possibilidades palpiteiras. É preciso um moço mais graduado que eu pra se levar a sério resenhar tal trabalho. Me deliciei com os detalhes das urgências literárias do Lima.
Mas encasquetei com se achar ressentimentos nas anotações limabarreteanas. E de que ele queria o reconhecimento para a entrada, pela literatura, nas elites. Não me soa assim.
Desconto se faça no meu pobre palpite. Mas acho que Lima se descobre implicante e não ressentido: “implico com três ou quatro sujeitos das letras, com a Câmara, com os diplomatas, com Botafogo e Petrópolis; e não é em nome de teoria alguma, porque não sou republicano, não sou socialista, não sou anarquista, não sou nada; tenho implicâncias”. Na minha terra, tem um verbo digno dele: “inticar”. Inticar é verbo do dialeto nordestino que pode ser traduzido como “troçar”, “caçoar”, “zombar”, “gracejar”, “implicar” ou algo semelhante, mas que para o vocabulário nordestino é tudo isso junto e muito mais ofender. É esse verbo que acho pertinente ao Lima. Implicar ofendendo. Arranhando a alvura dos compromissos formais da época.
Me parece que Lima não consegue viver o seu tempo. Não cabia nele. Ele estava colocado além do tempo, além das burrices, além dos borra-botas, dos poderosos da época. Todo o seu comportamento inviabiliza o seu existir. Isaias critica todo o entorno beletrista de então. Insuportável. Fica fora do Gonzaga em Augusto, para os dois se colocarem na contramão da mediocridade. Como se Lima e Barreto pudessem existir aos pares para suportar a realidade. No Policarpo consegue zombar de si mesmo de das idéias que sabia serem vistas como policarpianas pela elite de então. No diário do hospício já constrói Cemitério dos Vivos e se faz em Vicente um crítico dos donos da loucura com palpites certeiros sobre os erros de então. E também não cabe no meio dos pobres, do subúrbio, dos doidos: “isso aqui tá parecendo um colégio”, fez um doido no hospício criticando Lima e seus livros, numa parte bem humorada do Diário.
Lima não cabia no seu tempo. E tinha que fazer uma literatura de fora daquele tempo. Mesmo que usando todo o entorno local para ser universal. E a si também se colocava por fora do tempo. Quase um Garambombo, o invisível, personagem de Manuel Scorsa que se sente invisível por não ser levado a sério, Lima vai de bêbado e sujo pra Ouvidor ver a Belle Epoque passar. Inticava com tudo. Implicava ofendendo. Só se mostra ressentido no diário íntimo, porque não se consegue ficar tão longe de uma época vivendo nela, mesmo estando fora. Na intimidade do diálogo com o mundo em que teimava em viver. Mas no conjunto da vida e obra é um implicante, replicante que “inticava” com todo mundo.
E a síntese: “Ah! A literatura ou me mata ou me dá o que peço dela”. Acertou nas duas pontas: matou o mulato e lhe deu tudo que ele queria dela. Acho simples assim. O reconhecimento em vida seria o fim do Lima que todos admiramos. E um detalhe: o reconhecimento por Monteiro Lobato em vida foi porque o paulistano não tinha de conviver com Lima Barreto. Um dia lhe vendo bêbado e implicante não teve coragem de se apresentar. Lobato fez de conta que não conhecia Lima. Ele já estava lendo Lima Barreto no futuro...
Não discordo aqui da escrita de si como uma literatura de urgência, como constrói com maestria a Luciana Hidalgo. Mas me atrevo a acrescentar Lima Barreto no rol dos escritores do futuro, porque não se comportavam (com todos os sentidos) na sua época. E, assim, colocaria Lima na companhia de Sousândrade, Gregório de Matos, Quorpo Santo e Torquato Neto, só pra começar e sem comparar os talentos, que cada um tem o seu cada qual.
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Luciana lendo Lima é montagem minha.
Publicado antes na Casa de Lima Barreto, site ali embaixo.
Um comentário:
Edmar,
Em seu talento de tantas vozes e faces reconhecemos aquele do
apresentador e mestre de cerimônias
dos circos : "Meninos e meninas,
senhores e senhoras " e aí você nos
traz o espetáculo (no bom sentido)
do cotidiano de maneira tão própria
- a da cordialidade-ao pedir
para entrar em nossa casa. Seja
sempre bem-vindo !!!!
E é neste espaço do circo que
acontecem umas palhaçadas meio
sérias. Entre elas me chamou a
atenção o veredito ou a sentença
aplicados sobre a cabeça e o destino de nosso Lima Barreto
imortal. Não vale a exceção da regra. Todo escritor-autor quer e faz questão do reconhecimento em vida precisando do incentivo e
da palavra que dará sentido à continuidade de sua obra.
Vamos acabar com essa psicologia
rasteira de achar que o sucesso
é ruim e faz mal.Pode até ser que
sim mas àqueles que invejam - ao
invés de aceitar - o talento
alheio. Vamos dar um basta ao
obscurantismo, terminar com a
rabugice e parar de inventar teorias caretas para explicar
o que pode ser bem mais simples.
Ninguém escreve para si próprio.
Antonio Candido nos fala sobre a
necessidade e a importância da in-
teração entre autor-obra-público
leitor e ele sabe o que está
dizendo. Ratifico suas palavras
e mais : é doloroso e dispensável
o óbito decretado, ainda em vida,
a muitos de nossos artistas e
escritores. Estamos repetindo o
preconceito e a rejeição impostos
à Lima B.Se pudéssemos voltar no
tempo e corrigir tamanho equívoco
teríamos evitado tanto sofrimento !
Eu, Graça, e afirmo por mim apenas,
pretendo publicar alguns de meus
textos; creio inclusive ter o quê e
como dizer. Acredito que possa
ajudar e levar fruição estética
a alguns outros - longe de qualquer
tipo de auto-ajuda. A propósito,o que faço, digo e escrevo é de
minha lavra exclusivamente. Não
partilho de "autoria múltipla".
beijos,
Graça
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