sábado, 9 de fevereiro de 2008

O Sertão Não Virou Mar

Cinéas Santos

Vez que outra, o sertão que ainda me habita reclama a presença do outro sertão, aquele que um dia habitei nos idos da infância. Quando isso acontece, não me resta outra saída a não ser desapracatar-me rumo ao Caracol, mesmo sabendo que, hoje, Campo Formoso não passa de uma expressão poética boiando no rio da memória. Seu Liberato, que não teve a intuição conspurcada pelos "saberes" da escola, sentenciava: "Com as primeiras águas, todos os viventes buscam o seu lugar de origem". Está explicado.

Na semana passada, voltei ao meu lugar de origem, ou melhor, ao que dele sobrou: uma capoeira infestada de carrapicho. Em São Raimundo Nonato, convoquei a irmã querida para a
inútil jornada ao passado. Como quem tenta montar as peças de um quebra-cabeça mágico, percorremos estradas, caminhos e carreiros à procura do inencontrável: os rastros da infância. De qualquer forma, fizemos boa colheita: "descobrimos" uma árvore bonita que não conhecíamos; visitamos duas tias velhas queridas, uma delas – Odete – foi quem inoculou em mim o vírus da poesia. De quebra, ainda reencontramos um primo tresmalhado (uma torrente de causos) que não víamos há meio século.

Ao contrário do que vaticinava nosso tio Conselheiro, o sertão não virou mar; diluiu-se para integrar-se definitivamente à aldeia global. Espectros de árvores mortas, as antenas parabólicas espetam o chão dos cercados. Nas saletas rústicas, em vez de oratórios, as telinhas azuis anunciam as alvíssaras do capitalismo mundializado, que acena com a felicidade eterna em módicas prestações mensais. Nas bodegas de beira de estrada, os sertanejos já não contam histórias de trancoso; discutem, com o mais vivo entusiasmo, o destino dos participantes do BBB - 2008. Motos barulhentas percorrem as trilhas que outrora pertenciam aos jegues. As únicas coisas que permanecem imutáveis são o sol e a escassez de chuvas. Ê sertão!

Em São Raimundo, apesar do carinho de dona Dezinha, me sinto um tantinho exilado: me faltam o café forte de D. Purcina, o abraço do Paredão, os
relaxos do Edison, o chamado do sino da capelinha da aldeia, a música dos chocalhos dos jegues dos catingueiros chegando para a feira... A Feira, aos sábados, era uma atração à parte, um universo rico e multicolorido, onde se misturavam o pregão do Zé Pança – Olha a besta gorda. Filas! – o som do cavaquinho troncho do Paizinho, a arenga do Raimundinho Graiada, o cheiro do bolo frito da Santa Preta, as imprecações do Marquinho, mais conhecido como Bode... Tudo isso se perdeu na poeira do tempo. São Raimundo, que ostenta, orgulhosamente, o título de "capital da pré-história", poderia, se quisesse, reivindicar para si o título de cidade mais barulhenta do universo: motos estrepitosas, carros de som e bandas de forró produzem aquilo que o Batista da Antônia chamava de "trabuzana dos infernos".

Encharcado de não-sertão, regressei à minha aldeia que, de cara lavada pelas primeiras chuvas, recebeu-me de braços abertos. Teresina, é por ti que erra meu coração cansado de inúteis embates. Tem razão o poeta medíocre: "A vida em teu seio é mais amena"...

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Mestre Cinéas, o irmão mais velho, embicou sua nave rumo ao fundo do sertão. E nesta crônica faz um encontro da memória com a globalização que habitou o sertão. Não virou mar, mas globalizou...

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