quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Cartas pra Redação

Recebi esta longa missiva de Aderval Borges, que entrou em contato com o Piauinauta, reproduzida abaixo:

Pia aí, pia aqui e em qualquer parte

O Piauí está na minha vida desde moleque, no interior paulista, lá pela segunda metade dos anos 60, quando comecei a ficar cada vez menos coerente com o que minha modesta família pretendia de mim. Nessa época ainda morava em São José do Rio Preto. Embora paulistas caipiras, eu e meus amigos nos ligávamos mais nas coisas que rolavam em outro Rio, o de Janeiro. Paulo Francis, Sérgio Augusto e o gaúcho Tarso de Castro, da primeira leva que inventou o Pasquim, eram nossos termômetros. Da chamada grande imprensa, um dos que líamos com atenção era o piauiense Castelinho, cuja coluna era publicada em jornais do Rio e de São Paulo. Também já conhecia O Homem e Sua Hora, do Faustino, por intermédio de dois primos mais velhos que a ditadura matou.

Veio o tropicalismo e nos ligamos muito nas canções daqueles cabeludos cheios de colares e cores, cafonas como nós, do interior, sem senso de ridículo como nós, procurando se superar, aparecendo para as elites das grandes capitais com um repertório no mínimo diferenciado. As letras de Torquato, em especial, exprimiam o sentimento de orfandade do migrante tímido e sensível, às vezes imodesto (quero voar num Concorde / tomar o vento num assalto...). Nos tocava fundo a mala malcheirosa do Caetano no dia em que ele foi embora de Santo Amaro pra capital e coisas do tipo.

Nossa condição, em São José, não era muito diferente da de qualquer nordestino. O noroeste era a região mais pobre do interior paulista. Só perdia para o Vale do Ribeira, onde o Lamarca fazia, na época, seu estágio para o fracassado sonho de uma guerrilha rural. Como muitos piauienses, baianos, cearenses, alagoanos e nordestinos de outros estados, também tivemos de deixar nosso interiorzão atrasado, com uma mão na frente e outra atrás, para tentar alguma coisa no eixo Rio-São Paulo. Na época, nosso conterrâneo Paulo Moura fazia tímidas aparições como músico de fundo dos astros dos festivais.

Veio a Navelouca. Cada um da minha turma, ainda em São José, tinha a sua. Aquela publicação atípica era nossa bandeira, uma espécie de identidade. Guardo a minha até hoje, toda despedaçada, faltando algumas páginas, mais viva do que nunca. Já a exibi às minhas duas filhas, para explicar o quanto aquelas folhas soltas da agora "navepouca" foram importantes para minha geração.

Fiz percurso diferente da minha turma, que foi toda para Rio/São Paulo: rumei para Brasília, onde conheci dois dos meus principais amigos pra vida toda, Duda (é assim como chamamos Durvalino) e Arão, ambos da terrinha. Enfim, quando vejo/ouço algo sobre o Piauí, fico ligado, como se fosse minha própria terra, embora só tenha aparecido em Teresina há mais de 20 anos, ainda assim rapidamente, a trabalho. As imagens da capital que tenho na memória em nada condizem com os prédios, os condomínios e outras merrecas do desenvolvimento atual. Teresina é mais ou menos do mesmo tamanho da minha São José. Ambas estão virando cidades grandes, como todos os conhecidos benefícios e malefícios.

Após umas tantas andanças, vivo atualmente indo e vindo a São Paulo, onde trabalho. Moro em Campinas. Devoto minha vida à literatura, pela qual venho queimando energia há décadas, e a um sítio, na divisa do estado com o Triangula Mineiro, onde planto seringueiras também há décadas. Sampa é uma cidade a cada dia mais feia e sem encantos. Se nada mudar nos meios de transporte e no trânsito, daqui alguns anos só nos locomoveremos por aqui a pé ou de helicóptero.

Os nordestinos das primeiras levas que para cá vieram foram totalmente incorporados; são mais paulistanos que eu. Os que migraram nas últimas décadas não vêm se dando tão bem assim. Muitos têm batido de volta para seus estados, mas levam a experiência – bem ou mal-sucedida – dos anos na megalópole e certamente vão aproveitá-la para colaborar com o desenvolvimento em curso nos estados do Nordeste.

No momento, Sampa vem recebendo grandes contingentes de imigrantes do terceiro-mundo. O que baixa de bolivianos, senegaleses, nigerianos e quenianos por aqui não é mole. Bolivianos, todos com cara de bugres andinos, são quase escravos de negócios informais montados na capital por outros migrantes latino-americanos que chegaram antes deles. Alguns eram militantes de esquerda que aqui se exilaram, tiveram apoio da Igreja, da Anistia Internacional, o caralho a quatro e acabaram virando empresários. Os atuais imigrantes sequer têm documentos.

Em certos trechos do centro da cidade parece que estamos numa capital africana. Só se vê negrões lustrosos – preto no Brasil não existe mais, pois a negrada daqui há muito que se amulatou – e só se ouve dialetos. Os extermínios étnicos dirigidos por mafiosos tribais já chegaram por aqui. Volta e meia um queniano é encontrado morto. A polícia vai até a pensão onde o cara mora e, como já dizia Geraldo Pereira, "ninguém sabe de nada".

Quanto a essa coisa toda de ser piauiense, sob aquele velho estereótipo de que se trata do estado mais atrasado do país, acho que já não cola. Pelo que noto, o Piauí tem vocação para deslanchar, isso se o capitalismo gafanhoto e a velha corrupção forem superados. Cabeças para isso tem de sobra. Esse sentimento de rejeição, que muitos piauienses ainda sentem, não é muito diferente da condição dos caipiras paulistanos, fluminenses, mineiros e de outros estados. No nosso caso, Sampa está pouco se lixando para quem é do interior paulista. Só valemos alguma coisa quando computado o PIB. De resto, só servimos para caricaturas grotescas de novelões e filmescos nacionais, assim como esse povo heterogêneo indiscriminadamente denominado pela indústria cultural como "nordestino". Veja só o capirês falado pelo Zé Dirceu – não conheço nenhum caipira de verdade que fale como ele.

Enfim, a labuta dos caipiras para conquistar espaço é igualzinha a dos paianautas e outros nautas nordestinos. Mas o mundo está em franca mudança. Há, ainda, alguma centralização cultural no eixo Rio/São Paulo. Em Brasília, nos idos anos 70, eu, Duda, Pedro Anísio, Arão e outros já prevíamos que essa merda toda iria implodir um dia. Os meios de produção estão levando a isso. A hegemonia dos grandes veículos está acabando. Ou seja, não temos mais de pensar em produzir coisas pro Brasil – ou seja, que agrade as duas grandes capitais –, temos, sim, de ter nossos olhares voltados para o mundo.

O que o tropicalismo queria está cada vez mais aí, sem grandes contestações. Uma jovem cantora inglesa tenta em vão conquistar seu espaço em Londres, não consegue, bota seu som no My Space e é convocada, por e-mail, para cantar It's long way no filme brasileiro Meu Nome é Johnny. Este é apenas um pequeno exemplo do que está rolando.

Para mostrarmos a que viemos, não tem choro: temos de batalhar com ousadia e competência. E sem essa de exotismo. A era de botar aqueles penduricalhos do tropicalismo nos pescoços já passou. Chega de tocar pandeiro para a elite carioca e paulista sambar. Precisamos fazer as coisas cada vez com mais eficiência e criatividade, isso sim. Danem-se os conceitos e preconceitos de Rio e São Paulo. E dane-se, igualmente, a picaretagem cartorial da velha política paternalista do governo federal.

Temos de pensar em ir longe, a exemplo do Faustino que veio ao Rio mostrar pros bobalhões metropolitanos que a poesia de vanguarda é do caralho, do Torquato e sua militância cultural pós-tropicalista à margem da margem, do interiorano Rimbaud que deu um nó nas vanguardas de Paris, do jacu Dylan que pôs a música popular americana de ponta-cabeça em Nova York e tantos outros. Não temos de ficar só em meio à nossa corriola não. Temos de mostrar ao senso comum – sempre um tanto leso ou, no mínimo, lento – o que os piaunautas e outros nautas são capazes. Ferro no cu dessa gente sossegada. Se não quiserem nos aceitar como somos, tomemos nossas naves e zarpemos com nossas idéias e realizações pra galáxia globalizada.

Aderval Borges


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Um quizado por resposta:

Louvo a crítica de Aderval. Na pós-modernidade, segundo Zygmunt Bauman, os excluídos são rejeitos, que não mais encontrarão lugar no planeta, diferentes do “exército de reserva” da modernidade capitalista avaliada por Marx. Agora, quem sobra no mundo do consumo não cabe mais daí pra frente. Um rejeito dispensável que vai incomodar os consumidores da pós-modernidade. Deste modo, todos os que se sentem sobrantes no planeta são astronautas mantidos em órbita, alheios ao mundo que gira no ritmo do consumismo desenfreado. Estamos de acordo. Entretanto, resisto em manter minha nave mãe na minha aldeia. De lá quero perceber esta globalização escancarada que arrebenta os limites geográficos. Os limites que estabeleço são afetivos, saudosos e perdidos. Não são bairristas, nem balizadores da compreensão. Preciso de outras aldeias para resistir ao que se coloca como inevitável na construção de um sujeito psicótico (aberto aos nós do consumo), que parece chegando na substituição do sujeito neurótico do século passado. Dany-Robert Dufour aponta este sujeito dessimbolizado: “o sujeito ‘pós-moderno’, entregue a si mesmo, sem anterioridade nem finalidade, aberto apenas para o aqui-e-agora, conectando tão bem quanto mal as peças de sua pequena maquinaria desejante nos fluxos que a atravessam”.
É para não ser assim que o fio condutor com o passado de cada um pode reforçar os laços simbólicos na pós-modernidade em que mergulhamos. E por ser de lá, na certa por isso mesmo, como piauinauta, mantenho-me em órbita deste novo mundo. Mas todos os outros argonautas, desde Jasão, mar adentro desta ilusão faremos contato... (Edmar)
OBS. O livro do Dufour chama-se “A Arte de Reduzir as Cabeças” e é deveras interessante para o entendimento do agora. Assim como o do Bauman, chamado “Vidas Desperdiçadas”, muito bom também, apesar de parecer título de novela mexicana... (Edmar)


PS- E antes que me esqueça: pela beleza do texto de Aderval esta carta é um artigo. Espero outros, Sr. Piauinauta por parte de pai e mãe.


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