domingo, 20 de março de 2016

AS DUAS NOVELAS por Aderval Borges



CISÃO IDEOLÓGICA ATÉ NO GOSTO POR TELENOVELAS

É isso mesmo, chapas. O arranca-rabo entre coxinhas e petralhas chega até os dramalhões televisivos. Conheço de longa data um casal que vive em constante pé de guerra devido às respectivas opções políticas. Ele, contador com grande clientela empresarial – mas não de empreiteiras e pecuaristas, claro – é coxinha total. Ela, médica sanitarista apaixonada pelo SUS, claro que é petralha. Devem se dar muitíssimo bem na intimidade, porque no dia a dia andam qual cão e gata e só falta se atacarem com unhas e dentes.

Ele lê tudo o que os petralhas abominam: Veja, IstoÉ, Época, Exame, Folha de S.Paulo, Estadão, O Globo, Valor Econômico, etc. Ela só se informa com publicações afins com o que pensa: Caros Amigos, Viramundo, Portal Carta Maior, Portal Vermelho, Só Esquerda e por aí afora. A caminhonete dele deixa um vácuo de imponência pelas vias públicas por onde passa. Ela tem um carro popular dos mais simplórios, inferior até aos veículos dos enfermeiros que são seus subordinados no hospital em que trabalha.

Ele tem um dragão tatuado no bíceps avantajado por horas de malhação numa academia. Ela tem a sigla SUS – já me mostrou – tatuada do lado esquerdo do peito, pouco acima do seio. Diz com certo furor: “Eu amo o SUS!” Quando repete isso, o marido musculoso baixa a cabeça consternado. Sabe que se o SUS fosse um homem, ele já teria dançado, pois a paixão da esposa pelo Sistema Único de Saúde está acima de quaisquer valores.

Ele bebe vinho dos bons. Consome castas especiais adquiridas por um sistema de compra coletiva de uma agremiação de refinados apreciadores da bebida. Ela gosta de uma irremediável cachacinha ou cerveja das mais populares: Skin, Cristal, Colônia, Itaipava e, quando não há nenhuma destas, Skol. A comida preferida dele é uma picanha mal passada numa churrascaria cujo dono é seu cliente. Ela é vegetariana. Razão pela qual os dois nunca almoçam ou jantam juntos.

O lazer preferido dele nos finais semana é montar numa motocicleta Speed e sair pelas rodovias a mais de 300 quilômetros por hora. O dela é se sentar com os amigos num boteco fuleiro de esquina para falar mal do ministro da Saúde “fascista” que vem interferindo nas diretrizes do SUS, dos coxinhas, do Ministério Público, do juiz Moro, do Eduardo Cunha e da chamada “direita” em geral. Seus amigos de boteco, claro, concordam em gênero e grau com o que ela pensa.

Curiosamente, ambos gostam de telenovelas. Ele as da Globo. Só perde a do horário das seis porque ainda se encontra no escritório. Ela não vê mais nada da Globo. Noticiários, só os da TV Cultura. Novelas, de jeito nenhum que vai apoiar qualquer produção “dessa rede direitista”. Para não quebrarem o pau também sobre as opções de programação, cada qual tem seu aparelho de TV. Por volta das nove horas, lá está ele de olhos fixos nos primeiros capítulos da novela “Velho Chico”, na Globo, e ela na produção turca “Fatmagul: A Força do Amor”, pela TV Band. Putz, uma produção de 2010! Pergunto a ela se é boa. Diz convicta: “Ótima!”

Sento-me do seu lado sofá para acompanhar um capítulo. Na sala ao lado o marido está hiperconcentrado na “Velho Chico”. Fatmagul é uma bela e jovem simples de Esmirna, que trabalha com seu irmão Rahmi como leiteira e cuidadora de ovelhas. Ela é a noiva de Mustafá, um pescador que construiu a casa onde viverão quando eles se casarem, e onde poderão ficar juntos sem interferência da sua cunhada Mukaddes, que vive infernizando a jovem. Desisto. Porém certo de uma coisa: as telenovelas turcas são tão ruins quanto as brasileiras. Os dois têm, portanto, algo em comum: em matéria de telenovelas só veem porcaria.

(Aderval Borges)



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