sexta-feira, 6 de março de 2009

Poema sobre o nada


Caros
O que segue abaixo é um troço meio monstruoso, sobre a inutilidade de tudo, do princípio ao fim. É vômito, dilaceramento pós um período muito ruim e complicado. O tema é a falta de. Desde o título: a ação (verbo nadar) compõe fraseado anagramático para redundar na não-ação. As referências são todas pra personagens, obras e criadores que tangenciaram os limites do fracasso, dentre os quais Deus, cuja lenda monoteísta condiz com a criação do primeiro homem da mitologia judaica. As remissões mais evidentes estão pra Mário Peixoto, cujo processo de piração e radical isolamento refere-se a essa constante busca pela exclusão. Envio a vocês porque de certa forma viveram isso comigo, em parte ou aos pedaços. Não há incongruência com o período pré-carnavalesco: a alegoria também é uma forma de negação.
Dervas




Adam nada no danado nada

Aderval Borges



profissão, não tem
intenção também não
como tal se mantém
contido
por ensejos
ou sem

assim
estando ou não
a serviço das mamães
para fazer nenéns
ou nem isso
como o gato siamesmo da Ágata de Muse
acidaúrica irmã de Urick
raspa das barbadas do barbatus bruto
que deu uma filha a Nero
outra a Tácito, a terceira a Suetônio
todas tão fluentes
abdutoras dos sanados senhores do Senado
nas obscuras noitadas
coisas atrás de casos

o autor atormentado
insubstantivo diáfano
deforma a memória
perquire símbolos
esculhamba Silius
se preciso
toma-a pelos pulsos
num impulso
os membros desmembrados
para revelar o que há de inútil
em cada um

homens sem qualidades
houve muitos
por todo tempo e espaço
no mormaço, sem ofício
à beira do precipício
sobras e sombras em profusão
(é a isso o que chamam obra?!)
sem estigmas nem requintes
os vultos assoberbados
desmentem o estereótipo dos bardos
em busca de louvores:
de porta em porta
não obtêm sequer favores

vamos a ela, a obra:
é limitada a compreensão
desta que prima pela qualidade
em busca da precisão
(técnica)
suas contradições são tantas
que nem condiz com as danças
de salão
infame definição:
canta sem encanto
para encontro entre tantos
até que cessem os excessos
das ceias
tetateantes teias
sob o teto da ostentação
resistirá ao tempo
estendendo malhas
que compensem a falta de entendimento?
espana o espanto
numa cruzada
sem cabimento
não obstante o desterro
receberá ao menos
enterro
quando já não houver tempo?
braços e punhos lado a lado
para não se desgarrar do destino trágico
– seu real sortimento
leitor, dê a ela ao menos uma olhadela
uma só
de esgueio
é tudo o que precisa
para não morrer de tédio
(sem recheio)
não carecerá das mazelas
dos mecenas
cenas de outras cenas
não recomendadas
claro!
lhe é própria a falta de juízo
barco à deriva
o percurso jamais concluído
seus mistérios
pela tormenta engolidos
tempestades de figuras
ao fim de tudo
a criatura
num perfil sem face
que se desfaz
ante o fulgor das expressões mais sonsas
criadas para fartos infartados
que se deixam oprimir pelas próprias fissuras
nascera natural e, como tal, abusou da compostura
vencida pelo desprezo de incautas criaturas
ápera, justa, debilidade jamais vista
expectorante erva, maná da mente, dada e revidada
aroma cultivado
o sentido por um triz
é tudo o que resta
dessa mera atriz
repleta de máculas e cicatrizes

por ora, de toda obra que se preze
e valha a pena ser deveras
se espera algo
produzida nos limites
(finitos)
em alguns momentos chamam-na clássica
noutros, crassa
idiotice
abusada por lacunas várias
se vê em ruptura
por falta de ajustes
até que
sem autor nem nome
torne-se efêmera representante
desse clã em chão silencioso
reconhecido
apenas pelos que dele estão ciosos
ondas nela batem e a lançam às rochas
jaz como uma mulher
sobraçada a uma tábua
que, por falta nexo, naufraga
e ao vasto museu do inconsciente regressa
chaveia o passado ao desmembrar-se
os sentidos pregressos são evasivos
abole a leitura da esquerda para a direita
de cima para baixo
lateja como o foco de uma lanterna frágil
para não iluminar
nem ser vista

a tu, inominável deleitor, restarão os corpos
não o meu, o seu, o nosso sal – o que mais? – nem sei
quer um conselho?
conselho não se dá:
oponha-se a uma única ocupação
desocupe espaço
pelo menos
mexa-se!
de um lado ao outro
sereno
cruze esquinas em desrespeito aos sinais
até ser atropelado por ocorrências tais
para as quais não há desculpa
o que mais?
toda acuidade é imprópria
habilite-se a isso
embora possa ser este
o caminho calminho
para os que querem as coisas mais simples
por primária demasia
ou complexas compulsões
para sacramentar utopias por falta de nexo
expanda-se indevidamente
jogue-se de encontro aos desafios
(por definição)
não busque ser previsível
quando sentir fome
farte-se com uma fodinha imodesta nos fast foods de fácil acolhimento
mas não requente os sinais
reponha as energias
no calvário em convulsão
a cada explosão
tente doar o novo
com tentáculos-polvo
tinturas dissimuladas
sem limitações
não invente o pinto para consolo
nem tente mover o ovo
de volta ao cu que acabou de pô-lo
não reaja aos empecilhos
não se faça de indevido
para ser devidamente piolho
não se dê por vencido
como esses folgados
que só conhecem a euforia
do fácil atrevimento
erga estruturas
à altura do invento
depois jogue-as
no vazio
ao vento

o poeta-não pode ser sem merecer
obras difíceis não dão prazer
resultam de idéias, experimentos
sempre à procura de leis inerentes
as possibilidades as excitam
as facilidades as entediam
ao serem autorizadas pelo meio autor
fazem com que o poeta-não perca autoridade
quanto mais as exibe, mais se exime
nesse haver em vão
tenta delimitar a repetição
mas ao amar o mar deixa de navegar
sua lide é abolida
toda grandeza passa a ter o peso do proselitismo
faz para ser capaz de se desfazer após
e varrer o pó das velhas convicções
resta a musa problema
esquiva às vassalagens
e aos prelúndios primaveris
não requer liberdade
– a prisão é seu aprendizado
vive sempre esgotada
de sua efervescência urge
uma energia que a ninguém convence
quando exposta
volta-se aos opostos
como o cândido de Voltaire
insinuante fiorde de Nievski
do qual todo idiota é cúmplice
sob uma crise de asma
ri do próprio sarcasmo

caríssimo autor
quando estiveres aceito
não te levarão a sério
tuas virtudes e defeitos terão voltagens de baixo ampère
não encantarás
e nem te acatarão como artista
quem como tu
construiu nos limites
do não-ser
não terá mais interesse de dizer
que fez
o que não estava para ser dito
para ti será adventício
dos amadores sem exigência
profundos nesse mister dos homens sem função
que em nada creem por princípio

construa teus alicerces
sem ser escravo dos resultados
não guarde lembranças
das lambanças aqui gestadas
tenha sentimentos orgânicos
aprecie as delícias aliciadas
só mergulhe ao fundo em busca das pérolas defeituosas
veja ela, a natureza, que bela bosta!
não ofereça acórdãos nem acordes
cante, corte, cate o que estiver à solta
agarre-se ao fio dessa meada
mas não trabalhe por honorários
jamais compute os versos no Imposto de Renda
nem consolide-os como coisas à venda
esconda-os numa fenda
sem direitos adquiridos
entregue-se, pois
ao que já não faz falta
nem pense se vale a pena
render-se ao pecúlio, jamais!
sem ser do lar, reserve o culhão à senhora sensação
inverta rótulos e receitas
por ora, formule suas próprias drogas
quase sem fazer caso
plante no cascalho as sementes da desfeita
e cultive, de graça
os novos frutos da desgraça

aqui se encerra este poema sem lemas
uma não-obra cuja estréia está predestinada
a ser sabotada na véspera
em despeito pelo que não representa
o autor, a quem ninguém quer por companhia
é um piadista cujo senso de humor só é capaz de provocar pavor
nos limites da terra e do mar
o inútil como tal se realiza
na maré baixa
entre sargaços
alma e esquisitice
sem soluços e pieguice
pela memória de Salustre
Adam nada no danado nada

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