Paulo José Cunha*
O príncipe não precisa ter de fato todas as qualidades imaginadas pelas pessoas, mas deve se esforçar ao máximo para parecer tê-las. Deve disfarçar bem sua natureza mais animal (a raposice, por exemplo) e ser um grande simulador e dissimulador.
Maquiavel sabia das coisas. Imune à ética, trabalhava no limite da realidade política, abstraindo qualquer traço de idealismo. Para ele, a sociedade precisa ser examinada com base nos fatos inerentes à natureza humana, à prática humana, sem considerar defeitos ou virtudes. O que importa é o fim. A ética que se dane. E assim consagrou o vale-tudo do método político.
Na civilização da imagem e do som, a sociedade foi adestrada para a convivência bovina com a dissimulação. Um condicionamento sedimentado tão bem que sobre ele não se levantam questionamentos. É assim porque é assim, porque sempre foi assim, e assim deve continuar a ser. A percepção do mundo passou a advir do audiovisual – do que se vê e do que se ouve. E a realidade objetiva? Bah, que canseira esse papo de realidade objetiva. Num projeto de resultados, importa é a imagem projetada, produzida e distribuída para o atingimento de determinada finalidade. O voto, por exemplo. Com o advento das campanhas eletrônicas, ele é dado muito mais à forma do que ao conteúdo. E ponto final.
A lei Ricupero (“O que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde”), fixada em 94 quando estourou o escândalo da parabólica, é a tradução tupiniquim mais precisa das lições de Maquiavel. Neste limite opera o marketing político, inclusive em períodos não eleitorais. É socialmente aceito em todas as democracias que o candidato exponha suas qualidades e omita seus defeitos. Jamais, numa campanha eleitoral, ver-se-á candidato ostentando honestidade e ao mesmo tempo revelando ter dado cheque sem fundos. Ou seja: não revelar pode. O limite vai até aí. Passar dele é ingressar no território da anti-ética política. Que nem soco abaixo da linha de cintura em luta de boxe.
Em dois episódios recentes a arte da dissimulação para fins políticos raspou perigosamente a trave da anti-ética. O primeiro foi a plástica de dona Dilma. Como toda plástica recente, repuxou um pouco o rosto da ministra, mas rejuvenesceu-a no mínimo uns dez anos. Nada contra as cirurgias plásticas. Atendem à vaidade feminina. Funcionam como uma maquiagem, digamos, um pouco mais radical. Embelezam as mulheres. Tornam o mundo um lugar melhor pra se viver. Mas quando a plástica é feita com finalidade política, como foi o caso, a finalidade de fazer alguém passar-se pelo que não é, comete-se um pecado não capitulado nas tábuas de Moisés – o pecado da dissimulação. E olha que dona Dilma nem precisava disso. É uma candidata e tanto, cheia de méritos, coberta de realizações, o diabo. Cada ruga que carregava no rosto testemunhava um pedaço de sua rica trajetória. Rugas? No más. Na ditadura midiática da juventude a qualquer preço, importante é ser, e se não der pra ser, pelo menos parecer jovem. Dona Dilma preferiu parecer.
Da mesma forma a fotomontagem dos prefeitos no encontro organizado pela Confederação Nacional dos Municípios. Esbaldaram-se deixando-se fotografar entre “bonecos” de Dilma e Lula, como se estivessem ao vivo com os dois. Tal como a plástica de dona Dilma, a fotomontagem em si mesma não tem mal nenhum. É engraçada, eu mesmo já fiz várias, posando de Lampião, de Chacrinha, de James Bond. Só de folia. Passa a ter algum mal quando seu uso carrega finalidade eleitoreira, como revelou um dos prefeitos, com a foto na mão: “Vou mostrar aos meus eleitores. Traz um pouco de credibilidade porque é a candidata do presidente e amanhã, se for eleita, pra gente é bom”. Vi uma dessas fotos. A montagem é grosseira. Mas para populações pouco esclarecidas pode mesmo passar por foto real, insinuando um flagrante do prefeito na intimidade do presidente e da candidata à sua sucessão.
O príncipe, como ensinava pragmaticamente o florentino, não precisa ter as qualidades imaginadas pelas pessoas, mas deve se esforçar ao máximo para parecer tê-las. Querer passar-se por jovem para iludir o eleitor, ou iludi-lo duplamente fingindo intimidade inexistente com os poderosos da hora (inclusive com quem estica o rosto para passar-se por jovem), vai na contramão da origem etimológica da palavra candidato. Ela vem do latim candidatus, isto é, vestido de branco, a cor que simboliza a pureza, com tudo o que tal simbolismo possa ter de politicamente incorreto atualmente. Só pra refrescar a memória dos mais jovens, pureza, um dia, já foi condição para alguém se candidatar a cargo público. Eu juro.
Se ainda não chegamos ao cinismo de aceitar qualquer ação como parte do vale-tudo eleitoral, alguém aí pisou na bola. E a pureza? Cala a boca, menino, que isto não é hora pra inconveniências!
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*Paulo José Cunha é professor e jornalista
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