quinta-feira, 19 de março de 2009

A DESCOBERTA DA POESIA



Cinéas Santos


O lugar onde nasci não poderia ser menos poético: chapadão infestado de cupinzeiros e socas de alho-bravo, situado num ponto equidistante entre o nunca e o nada. Não bastasse isso, ostentava o mimoso nome de Lagoa dos Tubis. Dona Purcina, que acreditava no poder transmudador das palavras, decidiu rebatizar a gleba com o nome de Campo Formoso. Com sua vocação de matriarca sertaneja, atraiu parentes, aderentes, agregados e afins. Em pouco tempo, o lugar tornou-se habitável. Ainda assim, ali faltava quase tudo, principalmente água potável, livros e palavras. O nosso universo vocabular era de uma indigência gritante, ou melhor, emudecente (perdoem o neologismo). Um exemplo: o xingamento mais tenebroso que conhecíamos era infeliz. Quando se pretendia reduzir alguém a nada, bastava xingá-lo de “infeliz sem sorte”. A razão parecerá risível: simplesmente desconhecíamos o vocábulo feliz. A despeito disso, como no poema “Vício na Fala”, de Oswald de Andrade, em que diziam “teiados”, mas construíam telhados, sem conhecermos a palavra feliz, às vezes, éramos visitados pela felicidade...
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À noite, nos meses de estio, sentávamos na calçada da casa grande para debulhar milho, feijão, ou simplesmente prosear um pouco, “gozando a fresca da noite”. Para animar a conversa, os mais velhos contavam histórias tenebrosas. Os personagens eram sempre lobisomens, mulas-sem-cabeça, caiporas, etc. Não era propósito deles assustar as crianças; era só pobreza de repertório. Aterrorizados, os meninos encharcávamos as redes puídas. E a noite era um percutir de cascos, uivos lancinantes, um nunca-amanhecer...
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Numa daquelas noitadas, a tia mais nova, que se chama Odete, resolveu cantar uma história fabulosa: a de um turco corajoso que, nas asas de um pavão misterioso, raptou a filha de um conde rico e soberbo nos longes da Grécia. Repetindo Bandeira, tive, naquele momento, o meu primeiro alumbramento. Experimentei uma sensação indescritível que, só muito mais tarde, fiquei sabendo tratar-se da emoção estética. Naquela noite a poesia entrou em minha vida e alojou-se para sempre no meu coração. Mal aprendi a gaguejar as palavras, atirei-me à leitura dos folhetos (que chamávamos “romanços”) com voracidade dos sem-nada. Mais tarde, no “Ginásio Dom Inocêncio” descobri, num livrinho da Aída Costa, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Olavo Bilac e até um cidadão com um nome estranho: Alphonsus de Guimaraens que, com sua louca Ismália, me fazia chorar. Os poemas eram poucos, a solução era ler e reler até decorá-los.
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Muito tempo depois, já em Teresina, numa antologia organizada por Walter Wey, li o “Poema de Sete Faces”, do Drummond. Uma revelação: descobri que a poesia podia libertar-se da jaula da metrificação sem cair no prosaísmo. Com o tempo vieram os outros, principalmente Bandeira e Quintana, os mais amados. Dia desses, encontrei um poema confessional de João Cabral (algo raro), denominado “Descoberta da Literatura”.Nele, Cabral afirma ter descoberto a poesia justamente nos folhetos de cordel, que lia para os trabalhadores do engenho da família. A partir da leitura das “letras analfabetas”, João Cabral tornou-se um dos maiores poetas da literatura brasileira. Quanto a mim, imprestável para o fazer poético, contentei-me em ser leitor, editor e, principalmente, camelô dos bons poemas dos outros. Isso me basta. Quintana tem razão: “A poesia é a invenção da verdade”.

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