domingo, 11 de janeiro de 2015

ARNALDO ALBUQUERQUE

(Edmar Oliveira)

Ele sempre brincava de morrer. Teve um quase suicídio num acidente de moto e sua perna esquerda despedaçou-se tendo que ficar em cima de uma cama por quase um ano. Neste período produziu um desenho animado que impressionou todo mundo, ganhou prêmios e se perdeu, como tudo que ele fez. Nessa época ele estava no Rio e visitei-o em Botafogo, no apartamento da mãe. Na imobilização quase total dos membros inferiores, agitava o corpanzil, os braços e as mãos. Fazia careta na cara barbuda para que eu entendesse a técnica de animação usando caixas de sapatos, lâmpadas, cartolina, pincéis, tintas. Quando vi o resultado, muito depois, já em Teresina, não acreditei. Aquilo me impactou tanto! Era um carcará que atacava os bruguelos do sertão. Meninos recém nascidos. O carcará virava o Capitão América, representando o colonizador. Uma família, tipo Vidas Secas do Graciliano, andava na seca escaldante. O menino mata o Capitão América com uma baladeira (estilingue). O capitão América, abatido vira a águia símbolo dos americanos. Corte para uma cena onde a família faminta está assando a águia/carcará para matar a fome. Não é genial? E os anos 1970 estavam apenas começando.

Essa é apenas uma pequena aventura desse monstro que foi Arnaldo Albuquerque. A primeira revista de quadrinhos do Piauí foi ele quem fez. A capa era um exército de cartunistas nativos, comandados por ele Arnaldo, que com penas e lápis ameaçavam os heróis dos quadrinhos americanos num paredão com se fossem ser fuzilados. Com o sangrar dos pincéis e das tintas com faziam os cartunistas do Charlie Hebdo ainda agora e foram mortos por isso. Arnaldo atacou primeiro. E morreu no dia seguinte a Wolinski, um de seus heróis.

De outra feita organizou o que hoje se chama happening (é assim mesmo?) que na época nada entendi, mas que teve um resultado interessante. Ele confeccionou bustos de gesso dos amigos (eu era um deles) e espalhou esses bustos em pontos de grande concentração popular na cidade. No busto tinha um cartaz escrito “quebre-me” ao lado de um porrete. Ele filmava as reações. Interessante que no final alguém quebrava o busto e era mais interessante quando conhecia o retratado... Sacaram?

Todos os filmes super-oito da época tiveram a sua câmera. O "Adão e Eva” com Torquato Neto e o Terror da Vermelha – único filme que Torquato dirigiu, inclusive. No filme do Galvão, filmado aqui no Rio, tem uma cena impagável. A câmera de Arnaldo faz um zoom na buceta nua de uma estátua do Jardim de Alá. Arnaldo para o zoom, marca o local com os pés na areia, coloca ketchup na vagina da estátua, volta para o lugar e conclui o zoom. Efeito: surge sangue na vagina da estátua como por encanto e não se percebe o corte. De gênio.

No show musical “Udigrudi” na boate do Zé Paulino, Arnaldo fez uma cenografia detalhista de um cabaré da Paissandu (o baixo de Teresina) no palco. E que girava em dois ambientes. Coisa de profissional absoluto.

E fez muito mais. Desenhou, pintou e bordou para uma época desbundante. Mesmo com ele ainda vivo, sempre confessei que foi o MAIOR da minha geração. Eu sei que Teresina às vezes é cruel e pode asfixiar seus habitantes nos enredos de suas lendas.

Uma vez, por causa de uma paixão, comprou um revolver e ameaçava se matar todo dia. No começo, Assai Campelo dormia com ele e se embriagavam juntos. Desistiu e ele não se matou. Era uma brincadeira.

Um pessoal da nova geração o descobriu e os meninos estavam organizando seus guardados já quase perdidos. Fizeram um documentário sobre sua vida já agora perto do fim, que ainda não vi.

Da última vez que o vi foi que entendi a brincadeira de morrer. Estava se matando aos poucos, afogado no álcool. Ontem recebi a notícia de sua morte. Foi como se apagasse um bom pedaço do meu passado. O que posso fazer além de chorar se morro também um tanto na morte dele?

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PS. Um dos meus leitores manda um beijo no coração, Grande Arnaldo. Nós nos amávamos tanto naqueles tempos!








3 comentários:

moisés chaves disse...

Texto pungente, como se as artérias das mãos deixassem de pulsar aos escrevê-lo, para depois no final receber de volta o ar nos pulmões, recebendo de volta o último suspiro.Edmar Oliveira, Teresina pode ser cruel, até mesmo sangrenta, uma cidade Medéia que mata os filhos para atingir um amor que nunca teve.

BLUES 13 disse...

texto muito legal, aproximou-nos de uma pessoa conhecida dos priscos, e dos que conheciam a virtude do artista mesmo não compartilhando da amizade, firmo e destaco a frase "Eu sei que Teresina às vezes é cruel e pode asfixiar seus habitantes nos enredos de suas lendas" e complemento com: MATA E MATA SEM SANGUE.

norma soely disse...

Edmar fiquei feliz com seu texto sobre Arnaldo! Pude conviver com ele quando fiz a matéria sobre Cartunismo no Piauí (www.normasoely.blogspot.com) e fiquei encantada com a força da sua obra e do seu talento. Leide Sousa gravou uns vídeos e eu tirei fotos e fiz a matéria. Tivemos momentos marcantes como conseguir dele informações importantes no meio de sua loucura etílica lúcida. E assim conseguimos muito. Levamos ele para o programa Nossa Terra Nossa Gente. E, o mais importante Leide, Dino e eu fomos seu anjo salvador dois anos atrás. Sentimos uma vontade imensa de fazer-lhe uma visita em um sábado às 18h. Ao chegar em sua casa chamamos, batemos palmas e nada, foi quando Dino viu a sombra de um corpo caído no fundo do corredor. Era Arnaldo desmaiado após uma crise de hipoglicemia. Chamamos o SAMU e ele foi salvo. os médicos falaram que se tivesse ficado à noite sem socorro, teria morrido.