(Edmar Oliveira)
Ele sempre brincava de morrer. Teve um quase suicídio num
acidente de moto e sua perna esquerda despedaçou-se tendo que ficar em cima de
uma cama por quase um ano. Neste período produziu um desenho animado que
impressionou todo mundo, ganhou prêmios e se perdeu, como tudo que ele fez.
Nessa época ele estava no Rio e visitei-o em Botafogo, no apartamento da mãe.
Na imobilização quase total dos membros inferiores, agitava o corpanzil, os
braços e as mãos. Fazia careta na cara barbuda para que eu entendesse a técnica
de animação usando caixas de sapatos, lâmpadas, cartolina, pincéis, tintas.
Quando vi o resultado, muito depois, já em Teresina, não acreditei. Aquilo me impactou tanto! Era um carcará que atacava os bruguelos do sertão. Meninos recém nascidos. O carcará virava o Capitão América, representando o colonizador. Uma família, tipo Vidas Secas do Graciliano, andava na seca escaldante. O menino mata o Capitão América com uma baladeira (estilingue). O capitão América, abatido vira a águia símbolo dos americanos. Corte para uma cena onde a família faminta está assando a águia/carcará para matar a fome. Não é genial? E os anos 1970 estavam apenas começando.
Essa é apenas uma pequena aventura desse monstro que foi
Arnaldo Albuquerque. A primeira revista de quadrinhos do Piauí foi ele quem
fez. A capa era um exército de cartunistas nativos, comandados por ele Arnaldo,
que com penas e lápis ameaçavam os heróis dos quadrinhos americanos num paredão
com se fossem ser fuzilados. Com o sangrar dos pincéis e das tintas com faziam
os cartunistas do Charlie Hebdo ainda agora e foram mortos por isso. Arnaldo
atacou primeiro. E morreu no dia seguinte a Wolinski, um de seus heróis.
De outra feita organizou o que hoje se chama happening (é
assim mesmo?) que na época nada entendi, mas que teve um resultado
interessante. Ele confeccionou bustos de gesso dos amigos (eu era um deles) e
espalhou esses bustos em pontos de grande concentração popular na cidade. No
busto tinha um cartaz escrito “quebre-me” ao lado de um porrete. Ele filmava as
reações. Interessante que no final alguém quebrava o busto e era mais
interessante quando conhecia o retratado... Sacaram?
Todos os filmes super-oito da época tiveram a sua câmera. O "Adão
e Eva” com Torquato Neto e o Terror da Vermelha – único filme que Torquato
dirigiu, inclusive. No filme do Galvão, filmado aqui no Rio, tem uma cena impagável.
A câmera de Arnaldo faz um zoom na buceta nua de uma estátua do Jardim de Alá.
Arnaldo para o zoom, marca o local com os pés na areia, coloca ketchup na
vagina da estátua, volta para o lugar e conclui o zoom. Efeito: surge sangue na
vagina da estátua como por encanto e não se percebe o corte. De gênio.
No show musical “Udigrudi” na boate do Zé Paulino, Arnaldo
fez uma cenografia detalhista de um cabaré da Paissandu (o baixo de Teresina)
no palco. E que girava em dois ambientes. Coisa de profissional absoluto.
E fez muito mais. Desenhou, pintou e bordou para uma época
desbundante. Mesmo com ele ainda vivo, sempre confessei que foi o MAIOR da
minha geração. Eu sei que Teresina às vezes é cruel e pode asfixiar seus
habitantes nos enredos de suas lendas.
Uma vez, por causa de uma paixão, comprou um revolver e
ameaçava se matar todo dia. No começo, Assai Campelo dormia com ele e se
embriagavam juntos. Desistiu e ele não se matou. Era uma brincadeira.
Um pessoal da nova geração o descobriu e os meninos estavam
organizando seus guardados já quase perdidos. Fizeram um documentário sobre sua
vida já agora perto do fim, que ainda não vi.
Da última vez que o vi foi que entendi a brincadeira de
morrer. Estava se matando aos poucos, afogado no álcool. Ontem recebi a notícia
de sua morte. Foi como se apagasse um bom pedaço do meu passado. O que posso
fazer além de chorar se morro também um tanto na morte dele?
________________
PS. Um dos meus leitores manda um beijo no coração, Grande Arnaldo. Nós nos amávamos tanto naqueles tempos!
________________
PS. Um dos meus leitores manda um beijo no coração, Grande Arnaldo. Nós nos amávamos tanto naqueles tempos!
3 comentários:
Texto pungente, como se as artérias das mãos deixassem de pulsar aos escrevê-lo, para depois no final receber de volta o ar nos pulmões, recebendo de volta o último suspiro.Edmar Oliveira, Teresina pode ser cruel, até mesmo sangrenta, uma cidade Medéia que mata os filhos para atingir um amor que nunca teve.
texto muito legal, aproximou-nos de uma pessoa conhecida dos priscos, e dos que conheciam a virtude do artista mesmo não compartilhando da amizade, firmo e destaco a frase "Eu sei que Teresina às vezes é cruel e pode asfixiar seus habitantes nos enredos de suas lendas" e complemento com: MATA E MATA SEM SANGUE.
Edmar fiquei feliz com seu texto sobre Arnaldo! Pude conviver com ele quando fiz a matéria sobre Cartunismo no Piauí (www.normasoely.blogspot.com) e fiquei encantada com a força da sua obra e do seu talento. Leide Sousa gravou uns vídeos e eu tirei fotos e fiz a matéria. Tivemos momentos marcantes como conseguir dele informações importantes no meio de sua loucura etílica lúcida. E assim conseguimos muito. Levamos ele para o programa Nossa Terra Nossa Gente. E, o mais importante Leide, Dino e eu fomos seu anjo salvador dois anos atrás. Sentimos uma vontade imensa de fazer-lhe uma visita em um sábado às 18h. Ao chegar em sua casa chamamos, batemos palmas e nada, foi quando Dino viu a sombra de um corpo caído no fundo do corredor. Era Arnaldo desmaiado após uma crise de hipoglicemia. Chamamos o SAMU e ele foi salvo. os médicos falaram que se tivesse ficado à noite sem socorro, teria morrido.
Postar um comentário