Amar-te
A morte
Morrer
Paulo José Cunha, professor e jornalista
Naquela tarde abafada de
agosto de1971 no banco traseiro de um táxi pela Avenida Atlântica, ele anunciou
a decisão de morrer. Com os olhos vermelhos e pálpebras semicerradas, olhava a
luz da praia: “Um homem deve morrer quando conclui sua obra, não há razão para
continuar vivo”. Ao lado dele, pensando que aquilo não passava de retórica ou
filosofia de botequim, eu ponderava: “Mas como saber se a obra ficou pronta?
Será que alguém sabe quando a obra fica pronta?” Torquato não respondia.
Lembrava a trajetória de personagens que morreram muito jovens. “Veja Jesus
Cristo, Jimi Hendrix, Rimbaud, Janis Joplin, esse povo. Viu? É isso: terminou o
que tinha pra fazer, vai embora!” Aos 27 anos, menos de um antes de abrir o
gás, Torquato Neto falava da morte com a naturalidade de quem diz onde vai
passar as férias. Pelo retrovisor eu conferia o rosto sério do motorista, atento
ao nosso papo. Devia achar que éramos dois hippies drogados, cabeludos de
merda, filhos de pais endinheirados que bancavam nossa porralouquice. Torquato
estava alegre, apesar da dramaticidade do monólogo (que eu burramente entendia
como diálogo e a cujo conteúdo não dava a mínima importância). Estava leve e
decidido, e apenas navegava a bordo de um táxi que rolava por dentro da tarde.
A tranquilidade dele, sei agora, derivava do fato de que a morte havia deixado
de ser uma possibilidade para se converter em assentada certeza. Diante do
dilema hamletiano do “ser ou não ser”, o “não ser” se fixara como roteiro sem
retorno. A morte já não era aterradora nem se apresentava como a “indesejada
das gentes” de que falava Manuel Bandeira. A personalidade dele podia ser
tormentosa e angustiada, mas pelo menos essa
questão estava resolvida.
Somente a partir dos
textos que Wally e a viúva Ana Araújo recolheram dos guardados de Torquato para
a publicação de Os Últimos Dias de
Paupéria, aquela conversa de 40 anos atrás dentro de um táxi no Rio de
Janeiro fez sentido para mim. Não, ele não falava simplória, poética,
hipotética ou literariamente sobre a morte: falava dela concretamente, como
objetivo a ser atingido. Mesmo considerando
as drogas que àquela altura consumia em quantidades industriais, a decisão da
partida era antiga. Estava escrita na palma da mão, como expressaria numa de
suas últimas letras.Tudo assim, muito simples, fácil, direto e sem receios.
Suspeito, aliás, que receios em relação à morte nunca existiram. A atração
irresistível ao “não ser” havia se convertido numa decisão explicitada em Todo dia é dia D, canção cujo nascimento
acompanhei, ao som do violão de Carlos Pinto, em torno da mesa do apartamento
em que Torquato vivia com Ana e o filho Tiago na Tijuca. Até dei alguns
palpites, quando me perguntou o que estava achando. Disse que não gostava do
verso “meu coração na bacia”, que considerava de qualidade inferior ao
conjunto, e com cuja retirada ele concordou na época. Não sei se consta de
alguma gravação. Parece que não, eu pelo menos nunca o ouvi. Todo dia é dia D contém metáforas
tragicamente belas, como: “Desde que saí de casa/trouxe a viagem da volta
/gravada na minha mão, /enterrada no umbigo, /dentro e fora aqui comigo, /minha
própria condução”. Nada mais claro. Nada mais claro hoje. Na época, li a letra, ouvi a música, gostei do resultado e o
acompanhava cantando a música na rua (Torquato adorava repetir suas composições
mais recentes, pra fixar a melodia). O que não percebi foi que aquilo não era apenas a letra de uma música triste,
como tantas outras. Era uma declaração escrita e assinada, com firma
reconhecida: era pra valer. O homem
que conversava comigo naquele táxi tinha um propósito irredutível. E o
executaria pouco tempo depois, da forma que lhe parecia mais agradável. (Agora
entendo porque ele, na cozinha da casa da minha mãe, em Teresina, gostava de
abrir rapidamente a válvula do fogão, aspirar o gás e comentar, em tom de traquinagem: “O cheiro é legal, lembra
amêndoas, prova”).
Não era o cheiro das
amêndoas o que o atraía.
Dentro do táxi eu o
escutava e ria, mudando de assunto. Na verdade, recusava-me a admitir que ele
falava a sério. Achava que
metaforizava sobre a morte de brincadeira, como várias vezes o vira fazer sobre
outros temas. Ou escrevendo pra relaxar. Tal como uma vez em que o vi rabiscar
dezenas de vezes a palavra macaxeira,
que achava muito engraçada, numas três ou quatro páginas de caderno, usando
vários tipos de letras, só pra passar o tempo. Ou como naquele dia, na casa de
tia Dulce, quando perguntei a que se referia quando escreveu o verso ‘braço de
ouro vale dez milhões’ (de Mamãe Coragem).
E ele, às gargalhadas, confessou: “Nada, são só umas palavras aí, pra
provocar...”.
De volta ao nosso táxi:
“Olha aquele cabeludo dançando sozinho ali na calçada, Torquato! O cara tá
doidão, olha só!” E ele, entre solene e irônico, ajeitando o cabelão: “A
maioria dos cabeludos não saca que deixar o cabelo crescer é um ato de
afirmação política. Encaram a droga do mesmo jeito. Fumam e cheiram só pelo
barato. Uns babacas. Otários. Babacas. Babacas”.
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Torquato não
estabelecia diferença entre vida e estética. Provou isso com a morte, questão
transversal em toda a sua obra. O suicídio foi um projeto em processo, e não um
“momento de desequilíbrio”, como já ouvi falarem por aí. Nem o resultado do
desespero em função do sufoco político causado pela ditadura militar, como
também já ouvi ou li. Nada mais falso. A morte sempre esteve na raiz de tudo, anunciada, premeditada e consumada.
Estava na cara que ele
iria se matar. Só eu e a torcida do Flamengo não percebíamos, obnubilados pela
retórica caudalosa, e por causa daquele jeito meio blasé, aquela mania de falar propositalmente em código para gozar
com a cara da “assistência”. O papo no táxi parecia coisa de doidão, como o
motorista também deve ter sacado. Aquele motorista igualmente não levaria a
sério – como eu não levei – as menções explícitas à morte no meio daquela
conversa alucinada em que misturávamos no mesmo balaio Jesus, maconha, cocaína,
Jimi Hendrix, Mário Faustino, cabelão, caretice e repressão. Os detalhes
daquele papo doido há mais de 40 anos me parecem hoje tão nítidos porque o
próprio tempo ajudou a torná-los claros.
Em sua obra, a morte só
algumas vezes aparece sob disfarce. Quase sempre comparece de forma
escancarada. Poucas vezes, com temor. No máximo, como situação a ser evitada
não pelo dano pessoal, mas pelo efeito que causaria, por exemplo, na família.
Como escreveu durante internação no sanatório do Engenho de Dentro,“a morte não é vingança”, tentativa explícita de
autoconvencimento. Ou: “É preciso não morrer por enquanto”, outra referência ao
fato de que a obra não “estava concluída”, madura. Que ainda não havia chegado “a
hora”.
Mas eis que de repente
a morte se revela mais presente e mais antiga do que se imaginava. No livro O Fato & a Coisa, primeiro livro
escrito e organizado por um jovem poeta que nunca o publicaria; e nas Juvenílias, compilação dos escritos de
adolescência/juventude - a pulsão original de autodestruição como projeto se
revela em sua gênese. Os dois livros foram publicados em edições especiais pela
PLUG Publicidade, de Teresina, Piauí, em 2012, com prefácios meus.
As conjecturas sobre a
razão de nunca haver publicado qualquer livro são irreprimíveis. Pode ter
relutado por preguiça, por falta de condições financeiras ou talvez por não
enxergar razão em fazê-lo no instante em que sua obra já havia tomado rumo
próprio; ou mesmo por excesso de autoexigência. Se foi por esta última razão,
Torquato está em boa companhia. Cecília Meireles publicou aos 18 anos um
livrinho de versos neoparnasianos chamado Espectros,
que repudiou a ponto de nunca reeditar nem permitir que fosse incluído em sua
bibliografia. Guimarães Rosa venceu um concurso de poesias promovido pela
Academia Brasileira de Letras em 1937. Somente em 1997, 30 anos após sua morte,
os poemas do livro Magma – que alguns
críticos dizem não ter brilho - vieram a lume. Vinícius de Moraes renegou O Caminho para a Distância, publicado
quando tinha 20 anos, em que revela culpa diante do desejo, posição “bem
diversa daquela que o poeta em breve iria abraçar”, como comenta o crítico e
acadêmico Antonio Carlos Sechin. Mário de Andrade rejeitou Há uma Gota de Sangue em cada Poema, publicado sob o pseudônimo de
Mário Sobral, quando tinha 24 anos. Logo ele, que recomendava que nenhum
escritor publicasse nada antes dos 25 anos... Há vários exemplos de escritores
que publicaram seus primeiros livros e os republicaram tão modificados que mal
se parecem aos originais. Cassiano Ricardo e Mario Chamie são dois exemplos
lembrados por Sechin, que ainda aponta, em artigo publicado no suplemento Eu &, do jornal Valor Econômico (de onde recolhi essas informações), o exemplo de
Murilo Mendes, que renegou não o primeiro, mas o segundo livro, História do Brasil (1932). João Cabral
deformaria a edição original de A Pedra
do Sono a ponto de suprimir os títulos de quase todos os poemas e sumir com
alguns deles na íntegra. Por arrependimento ou sabe-se lá por quê, alguns
poemas do livro retornariam com título e tudo numa edição de 1968. O livro
misteriosamente voltaria (agora na íntegra!) em 1994. Ferreira Gullar percorreu
caminho idêntico: suprimiu Um pouco acima
do chão (de 1949) de seu Toda Poesia
(1980). Só em 2008 o texto voltaria à circulação, ainda assim na forma de
apêndice à sua Poesia Completa, Teatro e
Prosa.
Já com Torquato a
maldição da estreia não ocorreu porque não houve estreia. Nunca publicou livro
em vida. A edição de Os Últimos Dias de
Paupéria, organizado por Wally Salomão, e os conteúdos dos dois volumes da Torquatália, organizados por Paulo
Roberto Pires, são póstumos. Ele não os concebeu nem deixou qualquer indicação
de organização. Embora tivesse um livro pronto, escrito aos 17 anos, com índice
e tudo (O Fato & A Coisa). A esse
propósito, Paulo Leminski lembra que, “Como Buda, Confúcio, Sócrates ou Jesus,
Torquato não deixou livros”.
Seja para onde se
aponte a mira – para os textos de jornal, para os poemas, para as letras ou
para os filmes – e se encontra a morte, recorrente, obsessiva, determinando a
dinâmica da obra. Aproveito este espaço para falar dela e de suas ressonâncias
na produção do Anjo Torto.
TODAS
AS LETRAS DA MORTE
Nos
escritos mais antigos e nos mais novos Torquato deixou pistas sobre a obsessiva
relação que mantinha com a morte. Nas Juvenílias
(reunião póstuma de poemas da juventude),
aos 17 anos, já escrevia:
“(...)tenho que continuar pensando e ir guardando
tudo,
para esconder em mim o falar e o olhar
e mais: a morte”
A
despedida é a metáfora recorrente nas letras que produziu durante a Tropicália.
Mamãe Coragem, de 1968, abre com
versos devastadores: “Mamãe mamãe não chore/ A vida é assim mesmo/ Eu fui
embora/ Mamãe mamãe não chore/Eu nunca mais vou voltar por aí (...)”
Todo dia é dia D, de 1971, é repleta de
toques como: “Escorpião encravado em sua própria ferida/ não escapa, só escapo,
pela porta da saída” (...). Ou: “Todo dia é o mesmo dia/ de amar-te, a morte,
morrer”. Três da Madrugada, do mesmo
período (hospedado na época no apartamento de Torquato, também vi essa letra
receber melodia de Luiz Carlos Pinto) é provavelmente a sua mais triste
composição, e uma das mais melancólicas peças da música popular brasileira. A
certa altura diz, de forma crua: “Minha alegria cansada/ E a mão fria mão
gelada/ toca bem de leve em mim”. Pra
dizer adeus, de 66, a exemplo de Mamãe
Coragem, abre com a metáfora da despedida (que só depois do suicídio
permitiu leitura literal de seus versos, como reconheceu Edu Lobo, seu próprio
parceiro na composição): “Adeus/ Vou pra não voltar/ E onde quer que eu vá/ Sei
que vou sozinho (...) Nem é bom pensar/ Que eu não volto mais/ Nesse meu
caminho”).
Em Marginália II, de 67, o poeta revela,
com todas as letras, o destino que sabia traçado: “(...) Conheço bem minha
história/ começa na lua cheia/e termina antes do fim”. Na quase desconhecida Dente no dente, de 72 (parceria com Macalé), mais uma menção cifrada:
“(...)Lentamente, é nessa hora a hora/ que eu desejo o fim do fim de tudo”. E
pra fechar, o final desconcertante do poema Cogito,
que alguns críticos incluem entre os principais textos poéticos da língua
portuguesa: “(...) Eu sou como eu sou/ vidente/ e vivo tranquilamente/ todas as
horas do fim”.
A
GÊNESE
Em O Fato & A Coisa, as referências
iniciais ao tema estão salpicadas em todo o texto: “Como não morrer de medo/ se
esta noite é fera”. Nos primórdios do
poeta, a morte ainda o assustava: “(...) e um súbito medo de morrer, amor à
vida, tolo”.
Abre parêntese: a
influência do conterrâneo Mário Faustino se apresenta a partir da própria
métrica do verso: “Azulejos retorcidos pelo tempo/ Fazem paisagem agora no
abandono/ A que eu mesmo releguei um mal distante”. O mesmo ocorre com a
influência de Drummond, inteiramente exposta em versos como “Entre o bonde e o
desespero, ninguém preferiu o suicídio,/ e eu também fiquei”. Fecha parêntese.
Em A apresentação da coisa, novamente a morte ocupa o centro da fala:
“Tenho que pensar/ tenho que continuar pensando/ e ir guardando tudo,/ para
esconder em mim o falar e o olhar/ e mais: a morte, que é o que bate”.
Por
último, um excerto do poema Exodus,
onde a fuga (eterna e repetida metáfora para o encontro com a morte) é
apresentada sem subterfúgios: “Existe a fuga e isto basta./ Existe a fuga
movida/ por este conhecimento/ da podridão desta coisa/ que diz chamar-se
vida.(...)/ Pois que é preciso esta fuga,/ esta procura,/ este encontro”.
No
dia 7 de outubro de 1971, véspera da autointernação no Hospital Psiquiátrico do
Engenho de Dentro, Torquato encontrou
um recorte no bolso, “escrito ontem cedo, ainda em casa”. Dizia: “quando uma
pessoa se decide a morrer, decide, necessariamente, assumir a responsabilidade
de ser cruel: menos consigo mesmo, é claro. É difícil, pra não ficar teorizando
feito um idiota, explicar tudo. É chato, e isso é que é mais duro: ser nojento
com as pessoas a quem se quer mais bem no mundo”.
A
viagem da volta estava gravada desde a origem na palma da mão. No retorno da
reunião de aniversário, num bar perto de casa, na madrugada seguinte ao 9 de
novembro de 1972, fechou cuidadosamente as frestas do banheiro e abriu o gás do
aquecedor, enquanto escrevia versos erráticos num caderno espiral.
Com o gesto confirmou
(“e vivo tranquilamente/todas as horas do fim”) o que vinha anunciando desde
que saiu de casa, com a viagem da volta gravada na palma da mão.
A obra estava pronta.
Tinha chegado a hora de pedir um táxi e voltar pra casa.
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