OLIVEIRA, Edmar.Terra
do fogo. 1.ed. Rio de Janeiro, Vieira & Lent, 2013. 176p.
Com a maior parte da ação
ambientada em Teresina, Rio de Janeiro, e, numa
“cidadezinha perdida no Maranhão”, a obra compõe a narrativa de uma
família piauiense inter-relacionada à
ocorrências de incêndios criminosos que
devastam a capital do Estado. O tempo da
narrativa se estende dos anos de 1940 até o final dos anos 1980. A paisagem histórica é
a ditadura de Getúlio Vargas, seus
agentes locais, e suas torturas na cidade. O romance se organiza como
decifração de eventos dispersos na memória do narrador de primeira pessoa que
os recupera na duração de uma noite, e lhes dá um sentido.
Começa com o relato da viagem “ àquela cidadela perdida no mapa” –
escrita no gênero “road- movie”- mostrando um narrador descontraído , íntimo da paisagem
lírica da infância, na busca dos elos perdidos. E continua no ritmo da busca de
compreensão do que está velado por baixo dos panos, dentro das gavetas, e das
reminiscências que voltam no momento da escrita. Sente o cheiro do “café no copo de vidro” (p.
11), “ o café, ralo, fraco adoçado com um açúcar cor de areia não refinado! (p.
12). Neste seu reencontro com a imaginação, cria uma realidade real, um
reconhecimento proustiano (“Um sala de
jantar que fui buscar na minha memória” – p. 23).
O narrador incorpora, na obra, lendas, contos de fadas, loucura, memória e
acontecimentos históricos – matéria-prima da ficção. Os espectros
(fantasmas do passado) surgem a partir
da leitura do “manuscrito” do tio Alarico que ativa as lembranças. Neste processo, as cenas recuperadas aparecem
vivas, intensas, os personagens apresentam as suas fisionomias nítidas, os seus momentos de juventude,
beleza (tia Jacy) ,coragem, angústia e
loucura (tio Alarico), inferno do sofrimento (fase em que Jacy esteve casada
com o coronel Belizário), crueldade e disfarce (o Alemão).Neste percurso, recupera
sua experiência existencial com o tio Alarico, recorda os “satélites russos”
cruzarem o espaço, a tia Jacy de trinta de trinta anos (“jurava que tinha saído
de uma tela de cinema” – p. 27), a vesperal no cine São Luis, o noticiário da
rádio Central de Moscou.
Nesta narrativa de ficção, a memória
torna-se mais importante que a realidade, produzindo o entendimento e a clareza
do segredo, e até mesmo dos delírios. O narrador procura compreender a
complexidade de sua família, uma vez que nem tudo é claro para ele. É em cima
destas zonas escuras que ele trabalha, ou seja, escreve.
A geografia de Teresina e os
eventos históricos , principalmente dos primeiros anos da década de 1940 (polícia
local, as torturas sofridas pelos encarcerados, a presença de agentes da
ditadura de Getúlio Vargas, as intrigas políticas) encontram-se presentes, e se misturam ao
passado dos personagens: tio Alarico, a protagonista tia Jacy, o Alemão (um
personagem que apresenta suas ambiguidades, mas isto fica para os leitores
descobrirem).
O fogo não é apenas o incêndio
real que fustigou Teresina, na década de 1940, mas também o drama que queima os
corações e mentes dos personagens: “ O meu inferno começava no portão da fazenda, e o fogo ardia de noite
na cama com as pancadas que me educavam na compreensão do que queria meu senhor
e dono” (p. 119), “ Era como, e de fato, tivesse entrado no inferno para não
mais retomar ao mundo lá fora. No inferno que me sentia melhor junto à brasa do
fogão” (p. 120). Inferno de Jacy, mulher jovem, submetida à crueldade do marido
fazendeiro . O narrador aciona o maravilhoso, deslocando-o para a imaginação da jovem, um
modo de neutralizar as chamas que se
abatem sobre ela. Em alguns momentos do romance, as labaredas da angústia e da
paixão associadas à tortura atingem também o tio Alarico.
Romance instigante, marcado pela
busca das lembranças e desvelamento de seus sentidos. A escrita se desenvolve como
revelações dos segredos. Nele, o
narrador mantém o “suspense” até o
final, na medida em que as decifrações vão se dando ao longo da narrativa. É
mais uma contribuição importante para formação do cânone da ficção histórica brasileira, e piauiense, e para o
conhecimento da memória cultural e do
imaginário do Piauí, especificamente de
Teresina.
Francisco Venceslau dos Santos
(Prof. Adjunto de Teoria da Literatura,
Uerj, aposentado, e Membro efetivo da
Academia Brasileira de Filologia).
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