domingo, 28 de dezembro de 2014

Resenha

OLIVEIRA, Edmar.Terra do fogo. 1.ed. Rio de Janeiro, Vieira & Lent, 2013. 176p.


Com a maior parte da ação ambientada em Teresina, Rio de Janeiro,  e, numa  “cidadezinha perdida no Maranhão”, a  obra compõe a narrativa   de uma família piauiense  inter-relacionada à ocorrências de incêndios criminosos  que devastam a capital do Estado.  O tempo da narrativa se estende dos anos de 1940 até  o final dos anos 1980. A paisagem histórica é a ditadura de Getúlio Vargas,  seus agentes locais, e suas torturas na cidade. O romance se organiza como decifração de eventos dispersos na memória do narrador de primeira pessoa que os recupera na duração de uma noite, e lhes dá um sentido.

Começa com o relato  da viagem “ àquela cidadela perdida no mapa” – escrita no gênero “road- movie”- mostrando  um narrador descontraído , íntimo da paisagem lírica da infância, na busca dos elos perdidos. E continua no ritmo da busca de compreensão do que está velado por baixo dos panos, dentro das gavetas, e das reminiscências que voltam no momento da escrita.  Sente o cheiro do “café no copo de vidro” (p. 11), “ o café, ralo, fraco adoçado com um açúcar cor de areia não refinado! (p. 12). Neste seu reencontro com a imaginação, cria uma realidade real, um reconhecimento proustiano  (“Um sala de jantar que fui buscar na minha memória” – p. 23).

O narrador incorpora,  na obra,  lendas, contos de fadas, loucura, memória  e  acontecimentos históricos – matéria-prima da ficção. Os espectros (fantasmas do passado)  surgem a partir da leitura do “manuscrito” do tio Alarico que ativa as lembranças.  Neste processo, as cenas recuperadas aparecem vivas, intensas, os personagens apresentam as suas fisionomias  nítidas, os seus momentos de juventude, beleza (tia Jacy) ,coragem,  angústia e loucura (tio Alarico), inferno do sofrimento (fase em que Jacy esteve casada com o coronel Belizário), crueldade e disfarce (o Alemão).Neste percurso, recupera sua experiência existencial com o tio Alarico, recorda os “satélites russos” cruzarem o espaço, a tia Jacy de trinta de trinta anos (“jurava que tinha saído de uma tela de cinema” – p. 27), a vesperal no cine São Luis, o noticiário da rádio  Central de Moscou.

Nesta narrativa de ficção,   a memória torna-se mais importante que a realidade, produzindo o entendimento e a clareza do segredo, e até mesmo dos delírios. O narrador procura compreender a complexidade de sua família, uma vez que nem tudo é claro para ele. É em cima destas zonas escuras que ele trabalha, ou seja, escreve.

A geografia de Teresina e os eventos históricos , principalmente dos primeiros anos da década de 1940 (polícia local, as torturas sofridas pelos encarcerados, a presença de agentes da ditadura de Getúlio Vargas, as intrigas políticas)   encontram-se presentes, e se misturam ao passado dos personagens: tio Alarico, a protagonista tia Jacy, o Alemão (um personagem que apresenta suas ambiguidades, mas isto fica para os leitores descobrirem).

O fogo não é apenas o incêndio real que fustigou Teresina, na década de 1940, mas também o drama que queima os corações e mentes dos personagens: “ O meu inferno começava  no portão da fazenda, e o fogo ardia de noite na cama com as pancadas que me educavam na compreensão do que queria meu senhor e dono” (p. 119), “ Era como, e de fato, tivesse entrado no inferno para não mais retomar ao mundo lá fora. No inferno que me sentia melhor junto à brasa do fogão” (p. 120). Inferno de Jacy, mulher jovem, submetida à crueldade do marido fazendeiro . O narrador aciona o maravilhoso,  deslocando-o para a imaginação da jovem, um modo de neutralizar as chamas   que se abatem sobre ela. Em alguns momentos do romance, as labaredas da angústia e da paixão associadas à tortura atingem também o tio Alarico.

Romance instigante, marcado pela busca das lembranças e  desvelamento  de seus sentidos. A escrita se desenvolve como revelações dos segredos. Nele,  o narrador mantém  o “suspense” até o final, na medida em que as decifrações vão se dando ao longo da narrativa. É mais uma contribuição importante para formação do cânone da ficção  histórica brasileira, e piauiense, e para o conhecimento da memória cultural e  do imaginário  do Piauí, especificamente de Teresina.  

Francisco Venceslau dos Santos (Prof. Adjunto de Teoria da Literatura,  Uerj, aposentado, e Membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia).





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