domingo, 14 de dezembro de 2014

O ABSURDO DAS CONQUISTAS

A arte francesa da guerra
Alexis Jenni
trad. Eduardo Brandão
Companhia das Letras
540 págs.

Luíz Horácio-Porto Alegre

A arte francesa da guerra título do romance de estréia de Alexis Jenni traz consigo o teor da obra, a ambiguidade. Com  uma generosa dose de condescendência deste aprendiz.
Tudo começa com uma citação de Pascal Quignard: o que é um herói? Nem um vivo nem um morto, um […] que adentra o outro mundo e volta.
E se a citação deflagra a narrativa, é por meio dela que  investigaremos a personalidade do  capitão  Victorien Salagnon, e ambiguidade é o que não lhe falta. Ex paraquedista durante a “guerra de vinte anos”, desenvolve um diálogo com um desocupado que vive recluso num subúrbio de Lyon. Por vezes distribui panfletos publicitários, o que lhe permite uma vida de duras limitações. Gasta seu tempo bebendo, fazendo sexo e assistindo filmes de guerra.
A arte francesa da guerra é a história do encontro desses dois homens. O ex paraquedista ensinará o “entregador de panfletos publicitários” a pintar, e este escreverá sua história.
O ex combatente tem nome, seu aluno será simplesmente “o narrador.” Ele revelará  os pensamentos de Salagnon, os horrores vividos na guerra, as atrocidades cometidas. Ao leitor a permanente dúvida, até que ponto o narrador concorda, tem prazer com o que ouve de seu mestre.
A história percorrerá quase três décadas de colonização francesa, Indochina, Vietnam, Argélia. Jenni não faz apologia do heroísmo. Ao seu ver, as  guerras de colonização são guerras sujas.
E  por falar em Argélia, é exatamente esse país que leva a comparar Jenni com Camus pois o autor de A peste  não pensava a Argélia  não francesa.



Muito foi escrito, pelo menos na França, sobre as  guerras de colonização, várias  histórias foram contadas e muito sangue foi derramado.
Se anteriormente Salagnon manchou a história, o chão, a vida, com sangue; no presente pinta telas com tintas inocentes. Tanto sangue, tanta tinta, seja no papel, seja na tela, que acaba espirrando no General De Gaulle, também conhecido como “o romancista”, pois mente com a maestria dos romancistas.
De Gaulle mentiroso? De  onde isso? Antes de maio de 1968,  o general afirmou que pensar uma Argélia francesa não passava de utopia, mas Argel fervia e logo se percebeu a possibilidade de uma amizade franco-muçulmana, admitiu então que estava diante de algo bastante possível.
Mas voltemos a Victorien Salagnon, o professor de pintura, e ao narrador, seu aluno.
Eles representam a selvageria colonizadora, as diferenças, o nacionalismo, a raça, o fanatismo. Com o inimigo a gente não fala. A gente o combate; a gente o mata, ele nos mata. Não queremos conversa, queremos briga. No país da doçura de viver e da conversa como uma das belas-artes, não queremos mais viver juntos.
Como amenizar isso tudo? Amor, arte, luxúria, são algumas possibilidades capazes de desarmar o ódio.
A arte francesa da guerra é um livro extraordinário,colocá-lo ao lado de Os moedeiros falsos, de Gide; de Desonra, de Coeteze é o mínimo que este aprendiz pode fazer.  Calma, calma, as histórias têm algumas coisas em comum, eu escrevi al-gu-mas. O livro dentro do livro, Gide, colonizador/colonizado, Coetzee. Sigamos, pois. Ocorre que a obra de Jenni , mais volumosa, mais repleta de aventuras,tem também mais tempo para abordar exatamente o tempo.O tempo das várias histórias e as transformações daí advindas.
Em A narração e o discurso Gerard Genette afirma que  a narrativa é uma sequência duas vezes temporal, onde percebe-se  o tempo da coisa contada e o tempo da narrativa, desse modo faz a distinção  entre o tempo do significado e o tempo do significante.
Diz Genette que uma das funções do discurso narrativo é  inverter  esses dois tempos, imbricando-os.
O teórico mostra, entre as consequências dessas diferenças temporais, a exigência de leitura diacrônica, uma leitura  onde se perceba “pelo menos um olhar cujo percurso não é já comandado pela sucessão de imagens” (GENETTE, s.d., p. 32).
Vale lembrar  que o tempo utilizado para narrar uma história é diferente do tempo do acontecido. 
Desse modo,algo que durou muito tempo pode ser narrado em uma, duas linhas, por outro lado um acontecimento aparentemente insignificante pode consumir páginas e páginas da narrativa. Podemos dizer que se trata de uma estratégia do autor no sentido de chamar a atenção do leitor, dar ênfase a determinados pontos da narrativa.
Mas tudo é guerra, mesmo em tempos de paz. Nos bares, nas filas.
A violência ao alcance de todos, a tortura; “o francês é a língua internacional do interrogatório”
A violência perpassa a narrativa de Alexis Jenni. O narrador pergunta ao ex combatente se ele torturara alguém, e seu mestre confessa ter feito pior, esquecera a humanidade.
Mas atenção, sensível leitor, embora o título este não é mais um livro a relatar apenas as atrocidades da guerra, A arte francesa da guerra também aponta o dedo para a xenofobia francesa, para a rota de fuga assinalada pela arte, seja a pintura, seja a literatura. O que for...se depender do homem estará sujeito a  manipulação, ao cinismo, a toda ordem de deturpações. Nada a fazer....é a nossa natureza.




AUTOR

Alexis Jenni nasceu em 1963 em Lyon.Formado em Biologia, é  professor de Ciência numa escola em Lyon. "A arte francesa da Guerra" é o seu primeiro romance, com o qual ganhou o Prix Goncourt em 2011.




TRECHO

Victorien Salagnon possuía um dom que não havia desejado. Em outras circunstâncias não o teria percebido, mas a obrigação de ficar no quarto o havia deixado diante das suas mãos. Sua mão enxergava, como um olho; e seu olho podia tocar como uma mão. O que ele via, podia reproduzir a tinta, a pincel, a lápis, e reaparecia em preto numa folha branca. Sua mão seguia seu olhar como se um nervo houvesse unido os dois, como se um fio direto houvesse sido colocado por equívoco quando da sua concepção. Ele sabia desenhar o que via, e os que viam seus desenhos reconheciam o que haviam pressentido diante de uma paisagem, um rosto, sem no entanto terem conseguido captar o pressentido.


GENETTE, Gérard. A narrativa e o seu discurso. Lisboa: Vega, s.d.

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