A
arte francesa da guerra
Alexis
Jenni
trad.
Eduardo Brandão
Companhia
das Letras
540
págs.
Luíz
Horácio-Porto Alegre
A
arte francesa da guerra título do romance de
estréia de Alexis Jenni traz consigo o teor da obra, a ambiguidade. Com uma generosa dose de condescendência deste
aprendiz.
Tudo
começa com uma citação de Pascal Quignard: o
que é um herói? Nem um vivo nem um morto, um […] que adentra o outro mundo e
volta.
E
se a citação deflagra a narrativa, é por meio dela que investigaremos a personalidade do capitão
Victorien Salagnon, e ambiguidade é o que não lhe falta. Ex paraquedista
durante a “guerra de vinte anos”, desenvolve um diálogo com um desocupado que
vive recluso num subúrbio de Lyon. Por vezes distribui panfletos publicitários,
o que lhe permite uma vida de duras limitações. Gasta seu tempo bebendo,
fazendo sexo e assistindo filmes de guerra.
A
arte francesa da guerra é a história do
encontro desses dois homens. O ex paraquedista ensinará o “entregador de
panfletos publicitários” a pintar, e este escreverá sua história.
O
ex combatente tem nome, seu aluno será simplesmente “o narrador.” Ele revelará os
pensamentos de Salagnon, os horrores vividos na guerra, as atrocidades
cometidas. Ao leitor a permanente dúvida, até que ponto o narrador concorda,
tem prazer com o que ouve de seu mestre.
A
história percorrerá quase três décadas de colonização francesa, Indochina,
Vietnam, Argélia. Jenni não faz apologia do heroísmo. Ao seu ver, as guerras de colonização são guerras sujas.
E por falar em Argélia, é exatamente esse país
que leva a comparar Jenni com Camus pois o autor de A
peste não
pensava a Argélia não francesa.
Muito
foi escrito, pelo menos na França, sobre as
guerras de colonização, várias
histórias foram contadas e muito sangue foi derramado.
Se
anteriormente Salagnon manchou a história, o chão, a vida, com sangue; no
presente pinta telas com tintas inocentes. Tanto sangue, tanta tinta, seja no
papel, seja na tela, que acaba espirrando no General De Gaulle, também
conhecido como “o romancista”, pois mente com a maestria dos romancistas.
De
Gaulle mentiroso? De onde isso? Antes de
maio de 1968, o general afirmou que
pensar uma Argélia francesa não passava de utopia, mas Argel fervia e logo se
percebeu a possibilidade de uma amizade franco-muçulmana, admitiu então que
estava diante de algo bastante possível.
Mas
voltemos a Victorien Salagnon, o professor de pintura, e ao narrador, seu
aluno.
Eles
representam a selvageria colonizadora, as diferenças, o nacionalismo, a raça, o
fanatismo. Com o inimigo a gente não fala. A gente o combate; a gente o
mata, ele nos mata. Não queremos conversa, queremos briga. No país da doçura de
viver e da conversa como uma das belas-artes, não queremos mais viver juntos.
Como
amenizar isso tudo? Amor, arte, luxúria, são algumas possibilidades capazes de
desarmar o ódio.
A
arte francesa da guerra é um livro
extraordinário,colocá-lo ao lado de Os
moedeiros falsos, de Gide; de
Desonra, de Coeteze é o mínimo que este aprendiz pode fazer. Calma, calma, as histórias têm algumas coisas
em comum, eu escrevi al-gu-mas. O livro dentro do livro, Gide,
colonizador/colonizado, Coetzee. Sigamos, pois. Ocorre que a obra de Jenni ,
mais volumosa, mais repleta de aventuras,tem também mais tempo para abordar
exatamente o tempo.O tempo das várias histórias e as transformações daí
advindas.
Em A
narração e o discurso
Gerard Genette afirma que a narrativa é
uma sequência duas vezes temporal, onde percebe-se o tempo da coisa contada e o tempo da narrativa,
desse modo faz a distinção entre o tempo
do significado e o tempo do significante.
Diz Genette que uma das funções do discurso
narrativo é inverter esses dois tempos, imbricando-os.
O teórico mostra, entre as consequências dessas
diferenças temporais, a exigência de leitura diacrônica, uma leitura onde se perceba “pelo menos um olhar cujo
percurso não é já comandado pela sucessão de imagens” (GENETTE, s.d., p. 32).
Vale lembrar
que o tempo utilizado para narrar uma história é diferente do tempo do
acontecido.
Desse modo,algo que durou muito tempo pode ser
narrado em uma, duas linhas, por outro lado um acontecimento aparentemente
insignificante pode consumir páginas e páginas da narrativa. Podemos dizer que
se trata de uma estratégia do autor no sentido de chamar a atenção do leitor,
dar ênfase a determinados pontos da narrativa.
Mas tudo é guerra, mesmo em tempos de paz. Nos
bares, nas filas.
A violência ao alcance de todos, a tortura; “o francês é a língua internacional do
interrogatório”
A violência perpassa a narrativa de Alexis
Jenni. O narrador pergunta ao ex combatente se ele torturara alguém, e seu
mestre confessa ter feito pior, esquecera a humanidade.
Mas atenção, sensível leitor, embora o título
este não é mais um livro a relatar apenas as atrocidades da guerra, A arte francesa da guerra também aponta o dedo para a xenofobia francesa,
para a rota de fuga assinalada pela arte, seja a pintura, seja a literatura. O
que for...se depender do homem estará sujeito a
manipulação, ao cinismo, a toda ordem de deturpações. Nada a fazer....é
a nossa natureza.
AUTOR
Alexis Jenni nasceu em 1963 em Lyon.Formado em Biologia, é professor de Ciência numa escola em Lyon.
"A arte francesa da Guerra" é o seu primeiro romance, com o qual
ganhou o Prix Goncourt em 2011.
TRECHO
Victorien Salagnon possuía um dom que não havia desejado. Em
outras circunstâncias não o teria percebido, mas a obrigação de ficar no quarto
o havia deixado diante das suas mãos. Sua mão enxergava, como um olho; e seu
olho podia tocar como uma mão. O que ele via, podia reproduzir a tinta, a
pincel, a lápis, e reaparecia em preto numa folha branca. Sua mão seguia seu
olhar como se um nervo houvesse unido os dois, como se um fio direto houvesse
sido colocado por equívoco quando da sua concepção. Ele sabia desenhar o que
via, e os que viam seus desenhos reconheciam o que haviam pressentido diante de
uma paisagem, um rosto, sem no entanto terem conseguido captar o pressentido.
GENETTE, Gérard. A narrativa e o seu discurso. Lisboa: Vega, s.d.
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