domingo, 7 de setembro de 2014

quase um nada

(Edmar Oliveira)

            Me lembro hoje da minha aldeia naquele começo de mundo. Começo pra mim, que estava construindo minha passagem na vastidão do planeta. A pequena cidade se desmanchava nas margens do Parnaíba. Rio manso, vindo de um mundo escondido no interior do Goiás, e indo se derramar num oceano que eu não imaginava como era e nunca foi igual ao vir a ser. E aquele rio calmo que passava em meu quintal tinha o remanso, a pororoca, a arraia, a Iara, o Cabeça de Cuia e todos os perigos que suas águas carregavam no seu vagar preguiçoso. E, escapando destes perigos na travessia, a Tresidela se apresentava ainda mais medonha. Tresidela era a outra margem, do lado de lá, uma outra terra, onde habitavam os mouros das lendas que minha avó contava...
            Os mouros atravessaram o Atlântico nos medos dos portugueses e se refugiaram nas matas do Maranhão para ameaçarem a imaginação de um menino que delirava na beira do rio. Por certo que os mosquitos do fim do dia transportavam a malária que tornavam os mouros mais valentes e furiosos, com seus cavalos enfeitados de papel-de-seda e suas lanças de talo do coqueiro sangrando minhas primeiras memórias. Mas não podia esquecer a princesa, que tinha que ser salva e era a professora do colégio, ali tão frágil e sensível ao amor daquele menino que havia de vencer os infiéis...

            Por que me coloco nestas lembranças? É que o planeta amiudou. Os conflitos em toda parte me dão medo, mais que o rio e seus perigos. E também já não tenho certeza de quem são os infiéis ou se os mouros são os inimigos. Não tem mais o outro lado da Tresidela. É tudo meio confuso aqui, ali, acolá... Sinto saudade de quando as coisas eram mais firmes. Sinto saudade de quando meu mundo era menor, ali na beira do rio. Naquele pedaço pequeno as possibilidades eram infinitas. Aqui na imensidão do planeta globalizado a esperança é quase um nada...  

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crônica publicada originalmente em 20/03/2008

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