domingo, 21 de setembro de 2014

KAFKA POR DELEUZE E GUATTARI

(Luíz Horácio)

Maior e menor são dois conceitos que aparecem na década de setenta no texto deleuziano e logo invadem as análises, sejam elas estéticas, linguistocas, políticas, etc.... Esses conceitos passaram a   acompanham outras duplas conceituais, estático/ dinâmico, dominante/ dominado, senhor/escravo. Mas é com os conceitos  maior e menor que Deleuze pretende explicar a maneira como as normas sociais , culturais e políticas surgem, se estabelecem ou se transformam.
Literatura menor, conceito utilizado por Deleuze e Guattari, era frequentemente empregado por Kafka que costumava definir sua obra como literatura “menor”.
Deleuze e Guattari examinam o que vem a ser “menor”. Uma literatura menor não é aquela oriunda de uma língua menor, mas aquela que uma minoria, praticante de uma língua maior, é capaz de produzir.
É justamente no terceiro capítulo, O que é uma literatura menor, que o conceito começa  a ser examinado. É apresentado ao leitor os conceitos de desterriotorialização e devir, ferramentas corriqueiras nas mãos de Deleuze e Guattari.
Vários aspectos acompanham a dita “literatura menor”, entre eles o político representado por aqueles que vivem a praticar uma língua que não é sua língua materna, imigrados devido aos mais diversos motivos, servem como exemplo.
Kafka- Por uma literatura menor exige paciência, dedicação e relativo conhecimento de obras de Deleuze e Guattari, e do próprio Kafka. A leitura isolado do livro em questão pode resultar incompleta. Repare, estudioso leitor. Kafka- Por uma literatura menor, aborda três níveis teóricos. Anteriormente estudados na obra Mil platôs.

1-sóciolinguistico, aqui se encontra o material linguistico do qual Kafka dispunha na Praga do início do sec. XX.
2-estilístico- onde percebemos o resultado do trabalho de Kafka com aquele material.
3-político, reune os dois níveis anteriores para avaliar a forma como o processo kafkiano produz novos efeitos semióticos e permite nova perspectiva acerca do campo social.
Mas fiquemos com a situação linguística, por questão de tempo e espaço. Situações de bilinguismo ou de multilinguismo. Deleuze, particularmente, sempre demonstrou interesse por escritores bilingues: Samuel Beckett, irlandês , escrevia em francês; Franz Kafka, judeu praguense, escreveu em alemão.
A essa altura o leitor é praticamente convencido  a ver o bilinguismo como um pré-requisito para uma literatura menor. No entanto, Deleuze argumenta que o bilinguismo "nos coloca no caminho" de um conceito de "literatura menor", mas, enfatiza; somente no caminho. Esta função do bilinguismo e sua restrição imediata deve ser  entendida como uma função da problematização, deve ser avaliada em um nível prático e num nível teórico.
Vejamos o nível prático. A peculiaridade da situação de Kafka frente as condições sociolinguisticas de Praga no início do séc. XX. A coexistência de uma parte que utilizava a língua alemã, idioma oficial, dos negócios, das universidades; a língua vernacular, o tcheco, maioria da população; e o yiddish, usado por parte da população judia.
 Deleuze et Guattari apresentam Franz Kafka como um  modelo dessa literatura dita menor. No entanto, embora farta  documentação rumo a esse objetivo, desprezam certas peculiaridades que à época rondavam Praga e obviamente Kafka, entre elas as características do gueto onde viviam os  judeus de Praga, acrescente a precariedade do alemão falado por tal comunidade.
Kafka - Por uma Literatura Menor é uma obra de referência para quem deseja estudar a obra de Franz Kafka.

TRECHO

A Carta ao pai, sobre a qual se apoiam as tristes interpretações psicanalíticas, é um retrato, uma foto, imiscuída em uma máquina de uma espécie totalmente outra. O pai de cabeça curvada...: não somente porque ele próprio é culpado, mas porque torna o filho culpado, e não cessa de julgá-lo. Tudo é culpa do pai: se tenho distúrbios de sexualidade, se não consigo me casar, se escrevo, se não posso escrever, se abaixo a cabeça nesse mundo, se tive que construir um outro mundo infinitamente desértico. Ela é, no entanto, muito tardia, essa carta. Kafka sabe perfeitamente que nada disso tudo é verdade: sua inaptidão para o casamento, sua escrita, a atração de seu mundo desértico intenso têm motivações perfeitamente positivas do ponto de vista da libido, e não são reações derivadas de uma conexão com o pai. Ele o dirá mil vezes, e Max Brod evocará a fraqueza de uma interpretação edipiana dos conflitos, mesmo infantis. Contudo, o interesse da carta está em um certo deslizamento: Kafka passa de um Édipo clássico tipo neurótico, em que o pai bem-amado é odiado, acusado, declarado culpado, a um Édipo bem mais perverso, que se reverte na hipótese de uma inocência do pai, de uma “aflição” comum ao pai e ao filho, mas para dar lugar a uma acusação em enésimo grau, a uma reprovação tanto mais forte quanto se torna inassinalável e ilimitada (como a “moratória” do Processo) através de uma série de operações paranóicas. Kafka o sente tão bem que dá a palavra ao pai na imaginação, e lhe faz dizer: você quer de-monstrar “primeiramente que você é inocente, em segundo lugar, que sou culpado, e em terceiro lugar, que, por pura generosidade você está disposto não somente a me perdoar, mas, ainda, o que é ao mesmo tempo mais e menos, a provar e a crer você mesmo, ao encontro da verdade de outro lugar, que sou igualmente inocente”. Esse deslizamento perverso, que extrai da inocência suposta do pai uma acusação ainda pior, tem, evidentemente, uma meta, um efeito e um procedimento.

AUTORES

Gilles Deleuze ( 1925 - 1995) foi um dos mais influentes filósofos franceses do século XX. Depois de ensinar filosofia na Sorbonne e na Universidade de Lyon, foram os cursos de Vincennes que o tornaram célebre.Pensador da imanência, escreveu livros que marcaram época, como Lógica do sentido e Diferença e repetição; publicou diversos estudos sobre filósofos, como Hume, Espinosa, Nietzsche e Bergson, e sobre artistas, como Prouste Francis Bacon.



Félix Guattari ( 1930 - 1992) foi um filósofo, militante político e psicanalista francês, tendo sido aluno e paciente de Jacques Lacan, antes de romper com ele. Inventor da esquizoanálise, clinicou durante muitos anos na célebre clínica La Borde. Publicou notadamente Revolução molecular: pulsações políticas do desejo e O inconsciente maquínico: ensaios de esquizoanálise.


TRADUTORA


Cíntia Vieira da Silva é professora adjunta no Departamento de Filosofia e no Programa de Mestrado em Estética e Filosofia da Arte da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutora em Filosofia pela Unicamp, com estágio de pesquisa na École Normale Supérieure, em Lyon ( França ), é coeditora da revista Alegrar e autora de Corpo e pensamento: alianças conceituais entre Deleuze e Espinosa (2007)

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