domingo, 7 de setembro de 2014

Gnomonia digital

(Leo Almeida)

Estava lendo “Santo Sujo”, de Humberto Werneck, a biografia de Jayme Ovalle, e me deliciando com a legendária “Nova Gnomonia” desenvolvida pelo sujo santo Ovalle e registrada por Manuel Bandeira. Trata-se de uma categorização de homens, uma espécie de lista bem definida de tipos humanos, algo similar ao que o argentino J.L.Borges faz com os tipos de animais e que Foucault cita em “A palavra e as coisas”. Pensei imediatamente em meus amigos, tentando compor uma ou inúmeras características que os unissem e separassem, e pelo método analítico, como um antropólogo, ou psicólogo, eu os colocaria em categorias distintas, em compartimentos muito singulares. Muito difícil o tal trabalho. Mas acabei, dentro das várias tentativas que empreendi, coisa de quem não tem o que fazer, percebendo que meus missivistas eletrônicos carregam uma certa cara, muito específica, nas mensagens que me enviam por e-mail. Faça o seguinte: pense nos seus contatos, na sua lista de amigos no provedor em que mantém seu e-mail e você facilmente poderá identificar essas criaturas. Assim, cheguei a essa minha gnomonia digital:

Os Anjos – são normalmente chatos, a gente até gosta deles (fazer o quê, né?), mas nos enchem a caixa postal com mensagens edificantes, normalmente acompanhadas de um “para sua reflexão”. Os “Anjos” são pessoas boas, doces, ingênuas e muitas vezes, torno a repetir, chatas. Nos chegam com mensagens religiosas anunciando milagres, bondades, exemplos morais. Noutras, nos disparam suas correntes para alcançar o céu. Incluí nessa categoria todos os místicos, pois nem só de carismáticos e evangélicos é feito o mundo. Assim, recebemos mensagens de E.Ts. e anúncio do fim do mundo por um choque cataclísmico de um asteroide. Outro dia me enviaram uma mensagem dizendo que em 2012 passaria por aqui um planeta chupão que nos levaria, a nós os escolhidos, para um lugar melhor, ou será que era o contrário? Eu não presto muita atenção nesse tipo de mensagem e quero confessar aqui que normalmente deleto, sem ler, as mensagens dos “Anjos”. Essas pessoas caminham por Buda, Jesus, Astrologia, Ufologia, Chatologia, Nazca, Jerusalém. Recebo imagens de Cristo, de Maria, de galáxias, de Deuses e alguns diabos também. Os “Anjos” gostam de nos desejar boa semana, bom dia, bom trabalho. Também são mestres em me avisar que Jesus me ama e que morreu por mim. Ah, e só pra me emputecer de vez, adoram mandar beijos no coração. É mole?

Os Putos – As mensagens dessas figuras normalmente trazem, por compromisso ético, um aviso “Cuidado ao abrir”. Está dada a deixa para um quase Atlas de Anatomia que acabamos de receber. Me vêm desses amigos um festival enorme de vaginas, e peitos, e fodas, e transas, que explodem na tela do PC sem pedir licença. Por eles aprendi o que é um himem, como se faz uma operação de mudança de sexo e uma lista de cornos e adúlteras. Haja close de cus, e bundas, e xotas, e pirocas, trabalhados pelo Photoshop. O mais comum é receber um arquivo com o seguinte assunto: “Confiou no namorado, caiu na net” ou então qualquer nome feminino no diminutivo “Patricinha, Sheylinha, Norminha...” e, é claro, o indefectível “Cuidado ao abrir”. Sempre sabemos o conteúdo da mensagem que um “Puto” (ou “Puta”, quero deixar claro, pois existem mulheres também nessa categoria) nos envia. Os anexos que suas mensagens nos trazem não podem ser vistos por menores, nem por certos maiores. Um “Anjo” nunca poderia ver uma mensagem de um “Puto”.

Os Ongues – São aqueles que, preocupados com a extinção do bicho de pé da praia do Poço, nos encaminham enormes abaixo-assinados para preservação da espécie. São normalmente pessoas muito boas, de boa índole, e quase tão chatas quanto os “Anjos”. Por serem tão meigas, gostam de nos enviar apresentações em PPS com fotos de animais, de crianças, de paisagens, todas elas com o fundo musical de Richard Clayderman ou algo tão horrível quanto. Os Ongues também gostam de encaminhar notícias sobre poluição, buraco da camada de ozônio, o fim de uma floresta, o efeito estufa, enfim, eles são uma espécie de Green Peace digital, sempre atentos para nos infernizar com suas mensagens. Um “Ongue” não se contenta enquanto você não assinar aquela lista que pleiteia a libertação da baleia orca que estava em Free Willy ou então para que não se usem peles de animais. Um “Ongue” é sempre paradoxal, ou te encaminha uma mensagem pela liberdade total de expressão ou uma abaixo-assinado contra o aborto.

Os vermelhos – Você reconhece um deles pelo assunto de suas mensagens: são sempre temas muito sérios, muito reais e, principalmente, políticos. Encaminham longas entrevistas de economistas sobre a crise mundial, de políticos sobre a reforma fiscal, de prefeitos sobre a responsabilidade fiscal, de artistas sobre a situação social do país, enfim, são especialistas em nos encher a caixa postal com assuntos muito sérios e muito chatos também. Os vermelhos são engajados, têm seu partido muito bem definido, ou são petistas (e dentro dessa subcategoria há os Intragáveis, fanáticos como qualquer “anjo”) ou anti-petistas, afinal de contas a política do Brasil, nos últimos tempos, tornou-se um cenário maniqueísta por excelência. Há ainda a já conhecida categoria bostal de Coxinhas, que propagam mentiras deslavadas e defendem um Brasil puro a base do Anauê Anauê. O que os une é justamente a visão messiânica que carregam: todos vão salvar o país da bancarrota e da crise. Um vermelho deve sempre ser tratado com cautela, pois pode ser que ele não fale nunca mais com você, no caso de alguma mensagem que fira seus pontos de vista. Os vermelhos raramente são putos e normalmente são mau-humorados. Os coxinhas as vezes são anjos e ongues, mas a burrice os condena a não ler muitos textos que assinam.

Os Tiriricas – Esses são muito bem-vindos, sempre. Suas mensagens são sempre piadas, das mais risíveis às mais desprezíveis. Os tiriricas, não se contentando em lhe enviar a piada (que você já leu diversas vezes, pois elas se repetem), ainda lhe contam pessoalmente, quando vocês se encontram num bar. E tome piada de português, de adúltero, de viados (com i mesmo, fica mais i-ncisiva a viadagem), de bêbados, de loiras etc. Um tiririca é, por princípio e essência, politicamente incorreto, afinal de contas, fosse o contrário, não haveria piada nunca. Um tipo de mensagem dos tiriricas é aquele indefectível “Frase do dia”. Quanta inteligência e poder de síntese nos trazem essas mensagens. Os tiriricas gostam de enviar tiras de sites de piada, vídeos, flagras, com o objetivo único de nos fazer rir. Suas mensagens, na maior parte das vezes, termina com a figura de um ratinho simpático morrendo de rir e o som disparando uma gargalhada. Muito cuidado ao abrir a mensagem de um tiririca, ele adora pegadinhas, sustos. São pessoas muito divertidas e às vezes muito sérias na vida real. Um tiririca pode ser um anjo decaído.

Os Treches – também conhecidos como “papa-defuntos”. O título já diz tudo, ou seja, ele identifica aquele seu amigo que adora enviar imagens que consegue com um amigo policial ou bombeiro, contendo corpos estraçalhados, muito sangue e tripas e tendões. As mensagens normalmente vêm acompanhadas de um singelo aviso “Conteúdo forte”, isso quando ele se lembra de te alertar que se trata de desgraça em desfile. E haja estômago. A gente abre a mensagem e cai logo uma perna no colo; depois uma cabeça decepada, um olho esmagado. São cenas de acidentes de carro, de moto, de avião. Corpos atacados por animais selvagens. Uma sucessão de desgraças que, se você não é um treche, tira sua alegria na hora e te dá uma vontade danada de dizer ao treche que copule-se. Notei que uma certa recorrência de “Putos” são “Treches” e isso talvez se explique pela psicanálise na junção de Eros e Tãnatos. Será?


Os bate-volta – Esses não têm um tipo comum de mensagem, normalmente são mais sérios, menos “Tiriricas”. O que os caracteriza é o fato de que, num universo de mensagens que vão e nunca voltam, ou seja, espécie de mensagem retórica que não necessita resposta, eles insistem em responder. Um “Puto” envia as fotos de uma morena, e eles retornam uma resposta comentando a morena. Um “Ongue” lhes pede que proteja a sibipiruna azul do piauí e eles retornam uma resposta, que nunca é pedida devo destacar, comentando a situação do cerrado. Um “Tiririca” lhes conta uma piada e eles, sem inspiração para comentar, mas pressionados pela necessidade inexplicável de responder, devolvem a mensagem com um singelo KKKkkkkkk ou um ...rs. Os “Bate-volta” não deixam mensagem sem resposta e a impressão que me passam é que sofrem pela ausência de “Bate-voltas”  na sua lista de amigos.

Os Velhinhas-de-taubaté – também conhecidos como “Filhos de Orson”. Para eles, tudo é verdade. São aqueles que mais distribuem correntes pela net. Pensei em batizá-los como “Correntistas”, mas percebi que o seu problema é o excesso de crença. Sabe aquelas mensagens que te chegam dizendo que ao repassá-las para o maior número de amigos estarás ajudando uma criança a se curar do Fogo Selvagem na Patagônia? Aquela que afirma que a Microsoft vai te dar um Laptop novinho em folha caso comunique imediatamente a teus amigos a novidade tal? Ou então aquela mensagem que você já leu duzentas vezes e que diz que o filho de alguém está sumido há duzentos anos e o seu clique irá ajudar a resgatá-lo em Bornéus? Pois são essas as mensagens que os “Filhos de Orson” mais amam. Esse tipo de missivista também se caracteriza por disseminar as famosas lendas urbanas: o seqüestro e a extirpação de rins, os ataques de monstros, os chupa-cabras, o roubo de gasolina, etc. Apesar de assemelharem-se aos “Anjos”, o que realmente os diferencia é, por mais paradoxal que seja, a crença absoluta no lixo que circula pela grande rede. Toda “Velhinha-de-taubaté” pode ser um “Anjo”, mas nem todo “Anjo” é “Filho de Orson”.

Essa é uma proposta simples e que não quer excluir o fato de que um “Anjo” pode ser um “Tiririca” e não abrir mão de ser um “Ongue”. Sei que normalmente um “Anjo” não tolera um “Puto” e por essa razão, sempre que envio mensagens tenho que selecionar meu público, afinal de contas, enviar uma mensagem contendo imagens eróticas para um amigo evangélico é o mesmo que enviar uma foto de FHC para um amigo petista, não é mesmo? Essas categorias permitem uma certa mobilidade, não são castas, e por essa razão me surpreendo às vezes com uma mensagem maliciosa que me é encaminhada por um “Ongue” com tendências a “Anjo” e fumos de “Puto”. Isso acontece sempre. Não sou “Anjo” nem “Treche”, mas tenho cá minha parcela de “Puto”, de “Ongue”, de “Vermelho” e “Tiririca”.



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