(Edmar Oliveira)
O chá de coca, necessário a adaptação |
Aí, meninos, cheguei. Com um atraso histórico de uma
geração. Mas fui a Cusco. Melhor Qosco. A cidadela dos quéchuas, o umbigo do
mundo, no altiplano peruano a mais de três mil metros acima do nível do mar. O
respeito da adaptação é necessário, mormente num velho que já sou. Não confiei
só nas folhas de coca. Descansei um dia. Mesmo assim, no outro andava em câmara
lenta, filmado pelos nativos. O belo palácio de Koricancha ficava perto do
hotel. Muros incas, que foram revestidos com ouro roubado pelos espanhóis. A
cidade umbigo que costura os quatros cantos do mundo ainda resiste. Para cá
vinham povos desde a atual patagônia até a Colômbia. A ‘plaza’ das armas espanhola não era mais que a
praça dos palácios nativos. Cortez deve ter ficado admirado com uma cidade
europeia descoberta em plena selva. Uma outra civilização que diminuía a sua.
Como um bom europeu, saqueou os nativos. Roubou mais ouro do que se possa
imaginar e não prestou atenção na avançada civilização que destruía na sua
fúria de saqueador.
O inca, no centro da praça, parece reverenciar as igrejas do colonizador. |
Mas a resistência dos colonizados me surpreendeu. Não falo
aqui dos heróis da resistência, que foram muitos e festejados. O que ficou,
para nós do futuro, foi a resistência cultural no sincretismo religioso. Se na
época podiam ser considerados vendidos e aculturados, hoje nos mostram a
resistência da cultura inca.
Como não havia muito pintores disponíveis para adornarem os
templos católicos que representavam a dominação espanhola, muitos artistas
locais foram treinados para a pintura dominante. E aí os colonizadores
perderam: os afrescos da catedral de Cusco atestam a resistência da cultura
cusqueña. Hoje já reconhecida como um estilo de arte. Na anunciação de Maria, o
costado de sua cadeira ostenta um sol inca radiante. Porque a mulher grávida
era a fertilidade da terra. Um mural que representa a Santa Ceia cristã, a
patena exibe um Cui: um porquinho da índia, iguaria culinária inca. E o vinho
foi substituído pela Chicha Morada, bebida de milho servida nos rituais locais.
Mais de tudo: a festa religiosa católica mais importante, que convoca todos os
peruanos, é a procissão do Senhor morto. Tem um detalhe: nas festividades
quéchuas, o antigo Inca era retirado de sua tumba para desfilar junto ao povo.
Portanto não é o Jesus cristão que é cultuado, mas o Inca morto pelos
espanhóis. Absolutamente genial.
E na catedral, apesar de todas as imagens católicas, é uma
pedra inca a mais cultuada: o deus inca não tinha forma, era pedra, era
natureza. E a oferenda que se faz, dentro de um templo católico, é a folha de
coca oferecida ao deus pagão. O padre aceita como paga de manter os fiéis. E
Cusco é festa da coca, dos deuses e dos espíritos incas. Cada pedra quéchua
mostra a capacidade desse incrível povo que não foi respeitado pelos europeus.
Depois eu chego a Machu Picchu. Me aguardem. Tenho que tomar fôlego.
A santa ceia cusqueña: Cui e chicha morada |
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