domingo, 5 de janeiro de 2014

O umbigo do mundo


(Edmar Oliveira)
O chá de coca, necessário a adaptação
 
Aí, meninos, cheguei. Com um atraso histórico de uma geração. Mas fui a Cusco. Melhor Qosco. A cidadela dos quéchuas, o umbigo do mundo, no altiplano peruano a mais de três mil metros acima do nível do mar. O respeito da adaptação é necessário, mormente num velho que já sou. Não confiei só nas folhas de coca. Descansei um dia. Mesmo assim, no outro andava em câmara lenta, filmado pelos nativos. O belo palácio de Koricancha ficava perto do hotel. Muros incas, que foram revestidos com ouro roubado pelos espanhóis. A cidade umbigo que costura os quatros cantos do mundo ainda resiste. Para cá vinham povos desde a atual patagônia até a Colômbia. A  ‘plaza’ das armas espanhola não era mais que a praça dos palácios nativos. Cortez deve ter ficado admirado com uma cidade europeia descoberta em plena selva. Uma outra civilização que diminuía a sua. Como um bom europeu, saqueou os nativos. Roubou mais ouro do que se possa imaginar e não prestou atenção na avançada civilização que destruía na sua fúria de saqueador.


O inca, no centro da praça, parece reverenciar as
igrejas do colonizador.
Mas a resistência dos colonizados me surpreendeu. Não falo aqui dos heróis da resistência, que foram muitos e festejados. O que ficou, para nós do futuro, foi a resistência cultural no sincretismo religioso. Se na época podiam ser considerados vendidos e aculturados, hoje nos mostram a resistência da cultura inca.

Como não havia muito pintores disponíveis para adornarem os templos católicos que representavam a dominação espanhola, muitos artistas locais foram treinados para a pintura dominante. E aí os colonizadores perderam: os afrescos da catedral de Cusco atestam a resistência da cultura cusqueña. Hoje já reconhecida como um estilo de arte. Na anunciação de Maria, o costado de sua cadeira ostenta um sol inca radiante. Porque a mulher grávida era a fertilidade da terra. Um mural que representa a Santa Ceia cristã, a patena exibe um Cui: um porquinho da índia, iguaria culinária inca. E o vinho foi substituído pela Chicha Morada, bebida de milho servida nos rituais locais. Mais de tudo: a festa religiosa católica mais importante, que convoca todos os peruanos, é a procissão do Senhor morto. Tem um detalhe: nas festividades quéchuas, o antigo Inca era retirado de sua tumba para desfilar junto ao povo. Portanto não é o Jesus cristão que é cultuado, mas o Inca morto pelos espanhóis. Absolutamente genial.

E na catedral, apesar de todas as imagens católicas, é uma pedra inca a mais cultuada: o deus inca não tinha forma, era pedra, era natureza. E a oferenda que se faz, dentro de um templo católico, é a folha de coca oferecida ao deus pagão. O padre aceita como paga de manter os fiéis. E Cusco é festa da coca, dos deuses e dos espíritos incas. Cada pedra quéchua mostra a capacidade desse incrível povo que não foi respeitado pelos europeus. Depois eu chego a Machu Picchu. Me aguardem. Tenho que tomar fôlego.


A santa ceia cusqueña: Cui e chicha morada

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