(Luiz Horácio)
Já li e ouvi diversos
professores/escritores, no ato insano de
ensinar a escrever romances. Falam dos personagens, do tempo, do espaço,
do enredo que atualmente chamamos de trama, e uma série de outros aspectos. O
incauto candidato gastará anos até conseguir se desvencilhar da sórdida rede de
regras.
Arrisco dizer, caro leitor/futuro
escritor que, em caso de almejar escrever algo diferente, evite os professores.
Digo isso também por ter lido Às avessas (1884), de Joris-Karl Huysmans
(1848-1907). Você provavelmente não encontrará um enredo, não na forma que os
professores costumam apresentar e se deliciará com um excelente romance com
apenas um personagem. Nos cenários onde deveriam atuar personagens você
perceberá obras de arte.
Pensou que este aprendiz assumiu sua
demência? Ainda não.
As estranheza de Des Esseintes são
reveladas por um narrador em terceira pessoa, narrador minuciosamente objetivo,
preciso, seco, contrastando com certos achaques do protagonista. Às avessas mereceu uma edição em 1987,
tradução do francês, de José Paulo Paes, a mesma utilizada na edição atual.
Além do prefácio, também de autoria
de Paes, o leitor saciará sua curiosidade
com uma cronologia de vida e obra do autor. Ao final, um primor, Prefácio escrito vinte anos depois do
romance. J.- K. Huysmans (1903) . O viés crítico continua, o leitor pode
ler os comentários de vários autores, entre eles, Zola, Mallarmé, Max Nordau, e
o trecho de O retrato de Dorian Gray,
onde Oscar Wilde se refere ao livro de Huysmans .
Importante dizer que Des Esseintes analisa várias obras ao longo
da narrativa, algumas, inclusive, dos autores citados, mas não fica restrito à
literatura, as artes pintura, a música também lhe merecem atenção. Des Esseintes,
extremamente culto e libertino tinha como preferência, em se tratando de
literatura, a decadentista, apreciava poucos autores, não seria exagero que se
resumiria a Mallarmé, Baudelaire, Paul Verlaine e Edgar Allan Poe.
Mas quem é Des Esseintes?
Descendente de nobres, casamentos
consanguíneos arruinaram a família, frequentou escolas jesuítas, adulto
continuava admirando-os embora ateu. No momento, Des Esseintes completara 30 anos via-se em total paralisia, nada era
capaz de motivá-lo, o tédio, o mal do século, o spleen, o abandonava apenas quando sua imaginação o fustigava com
supostos problemas que, em acessos histéricos, pareciam-lhe insolucionáveis.
Um homem fino, dono de um rigor
estético que o leva a desprezar a
mediocridade burguesa e o mercantilismo reinante, cansado de tanta orgia, já
vitimado pela nevrose (assim se chamava a
neurose antes da psicanálise), Desseintes deixa Paris e se recolhe, na
companhia de dois velhos criados, a uma casinhola nos altos de Fontenay - aux - Roses, local
afastado e sem vizinhos.
Ele farejava
uma patetice tão inveterada, uma tal execração de suas, dele, ideias, um tal
desprezo pela literatura, pela arte, por tudo quanto ele adorava, implantada,
ancorada nesses estreitos cérebros de negociantes, exclusivament preocupados
com vigarices e dinheiro e acessíveis tão só a essa baixa distração dos
espíritos medíocres, à política, que voltava para casa e se fechava a sete
chaves com os seus livros.
Breve pausa para refletir acerca do
ofício de ensinar...
Eu vi, incrédulo leitor, ninguém me
contou. Um professor ensinando a escrever um romance. Dividiu o quadro negro em
mais de vinte partes e apontava o que deveria acontecer de modo a criar
suspense e manter o interesse do leitor.
Cordatos os pupilos a tudo copiavam. Menos eu, que, nesse episódio não passava
de um visitante. Nenhum daqueles atentos alunos, até o presente, escreveu coisa
que preste.
Fim da pausa para refletir acerca do
ofício de ensinar a escrever um romance.
Às avessas é um romance
fascinante por uma série de motivos, mas um deles é extremamente peculiar: o
fato de não acontecer nada, absolutamente nada.
Caso você prefira, meticuloso leitor,
não acontecer absurdamente nada.
Ao final arrisco dizer que quase
acontece. Des Esseintes ameaça viajar à
Inglaterra. Ruma a Paris sob chuva
forte, chegando lá dirige-se a um restaurante inglês, farta-se de comida e de
bebida, logo desiste da viagem.
Estou saturado de vida inglesa desde a minha partida;
seria uma loucura perder, por um desastrado deslocamento, sensações
imperecíveis. (…) Vejam - disse, olhando o relógio - , mas chegou a hora de
regressar a casa. - Dessa vez, ergueu-se
sobre as pernas, saiu, ordenou ao cocheiro que o levasse novamente à estação de
Sceaux, e regressou, com suas malas, seus pacotes, suas valises, seus estojos,
seus guarda-chuvas e suas bengalas, a Fontenay, sentindo o esfalfamento físico
e a fadiga moral de um homem que retorna ao próprio lar ao cabo de uma longa e
perigosa viagem…”
Des Esseintes
é o personagem de Des Esseintes, e diante de tão peculiar criatura, duvido que
você sinta falta de outro (s), solitário leitor. Dom Quixote seria outro sem
Sancho Pança, menos interessante, sem dúvida. O herói de Huysmans tem
parentesco com o herói de Cervantes.
O que é
movimento em Cervantes transforma-se em passividade,contemplação, análise em
Huysmans. O simplório Quixote encontra na arrogância de Des Esseintes o seu
contraponto.
Por outro
lado, enxugando Às
avessas,isso se faz necessário devido aos exageros do autor, o leitor se verá
perplexo frente a uma obra com ares de Esperando Godot, de Becket, de O estrangeiro, de Camus.
Nos três
casos nos deparamos com o absurdo da existência humana, consequentemente das
atitudes humanas, sem esquecer que Des Esseintes sofria de nevrose. Entediado
dedicava-se à botânica, mas tédio não é coisa que ofereça trégua e o quixote de
Huysmans exige uma criatura que se movimente, com lentidão, bien sûr. Uma
tartaruga é a escolhida. A carapaça é coberta de pedras de modo a combinar com
a tapeçaria.
Caso você
tenha entendido como um reducionismo de parte deste aprendiz enquadrar Às avessas como exemplo do absurdo, perdoe,
tentarei melhorar. Que tal um romance existencialista? Apesar da nevrose de Des
Esseintes.
Seu desprezo pela humanidade aumentou: compreendeu
enfim que o mundo se compõe, na maior parte, de sacripantas e imbecis.
Decididamente, não tinha nenhuma esperança de descobrir em outrem as mesmas
aspirações e os mesmos rancores, nenhuma esperança de acasalar-se com uma
inteligência que se comprouvesse, como a sua, numa estudiosa decrepitude, nenhuma
esperança de associar-se a um espírito penetrante e torneado como o seu, de um
escritor ou de um letrado.
Às avessas é um romance de altíssimo nível,
inclua-se a tensão necessária para tal classificação, tensão que o coloca na
fronteira, não é bem isso e também não chega a ser bem aquilo, percebe-se um
pouco de naturalismo combinado com um
tanto de simbolismo,resultado: obra além das classificações.
Atenção
professores fiéis às regras para se
escrever um bom romance! Leiam Às
avessas, não percam essa excelente obra, e continuem ensinando o bê a bá do
romance. Não faltarão discípulos. Eu garanto.
TRECHO
A fim de
desfrutar uma obra que juntasse, de conformidade com os seus desejos, um estilo
incisivo a uma análise penetrante e felina, cumpria-lhe chegar ao mestre da
indução, a esse profundo e estranho Edgar Poe pelo qual, desde o tempo em que
começara a relê-lo, sua predileção não havia podido declinar.
Mais do que qualquer outro, este era
talvez o escritor que correspondia, por afinidades íntimas, às postulações
meditativas de Des Esseintes.
Se Baudelaire havia decifrado nos
hieróglifos da alma a idade crítica dos sentimentos e das ideias, Edgar Poe, na
senda da psicologia mórbida, esquadrinhara mais particularmente o domínio da
vontade.
Em literatura, sob o título
emblemático de “O Demônio da
Perversidade”, fora quem primeiro espreitara esses impulsos irresistíveis que a
vontade sofre sem os conhecer e que a patologia cerebral agora explica de
maneira mais ou menos segura; quem primeiro, também, havia, se não, assinalado,
ao menos divulgado a influência depressiva do medo que age sobre a vontade,
assim como os anestésicos que paralisam a sensibilidade e o curare que anula os
elementos nervosos motores; era sobre este ponto, esta letargia da vontade, que
fizera convergir os seus estudos, analisando os efeitos de tal veneno moral,
indicando os sintomas da sua marcha, as perturbações que começavam pela
ansiedade, continuavam pela angústia, rebentando por fim no terror que
entorpece as volições, sem que a inteligência, conquanto abalada, vergue-se.
A morte, de que todos os dramaturgos haviam abusado tanto, ele a
aguçara de certo modo, tornando-a outra, nela introduzindo um elemento
algébrico e sobre-humano; na verdade, porém, era menos a agonia real do
moribundo que ele descrevia, do que a agonia moral do sobrevivente obsedado,
diante do lamentável leito, pelas monstruosas alucinações
que a dor e a
fadiga engendram.
AUTOR
Joris-Karl Huysmans nasceu em Paris
em 1848, filho único de pai holandês e mãe francesa. Depois de uma infância
marcada pela morte do pai e pelo segundo casamento da mãe, tornou-se
funcionário administrativo do Ministério do Interior, onde trabalharia durante
32 anos. Passou a primeira metade da Guerra Franco - Prussiana no hospital,
acometido de disenteria, e a segunda metade sob fogo cerrado, na capital
sitiada. Quando se fez a paz, retornou ao Ministério. Três anos depois publicou
seu primeiro livro, Le drageoir aux
épices (1874), coletânea de poemas em prosa à maneira de Baudelaire.
Voltou-se então para o romance, publicando Marthe
(1876), Les soeurs Vatard (1879),
En ménage (1881) e A vau - l’eau (1882). À rebours (Às avessas), publicado em
1884 e aclamado por Arthur Symons como “o breviário da Decadência”, marcou sua
ruptura com o grupo Médan, de Zola, e o começo de uma tentativa de ampliar o
alcance do romance. Seus outros romances são En rade ( 1887), Là-bas
(1891), En route (1895) , La cathédrale (1898) e L’oblat (1903). Morreu em 1907
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