domingo, 19 de janeiro de 2014

ÀS AVESSAS


(Luiz Horácio)
 

Já li e ouvi diversos professores/escritores, no ato insano de  ensinar a escrever romances. Falam dos personagens, do tempo, do espaço, do enredo que atualmente chamamos de trama, e uma série de outros aspectos. O incauto candidato gastará anos até conseguir se desvencilhar da sórdida rede de regras.

Arrisco dizer, caro leitor/futuro escritor que, em caso de almejar escrever algo diferente, evite os professores. Digo isso também por ter lido  Às avessas (1884), de Joris-Karl Huysmans (1848-1907). Você provavelmente não encontrará um enredo, não na forma que os professores costumam apresentar e se deliciará com um excelente romance com apenas um personagem. Nos cenários onde deveriam atuar personagens você perceberá obras de arte.

Pensou que este aprendiz assumiu sua demência? Ainda não.

As estranheza de Des Esseintes são reveladas por um narrador em terceira pessoa, narrador minuciosamente objetivo, preciso, seco, contrastando com certos achaques do protagonista. Às avessas mereceu uma edição em 1987, tradução do francês, de José Paulo Paes, a mesma utilizada na edição atual.

Além do prefácio, também de autoria de Paes, o leitor saciará sua curiosidade  com uma cronologia de vida e obra do autor. Ao final, um primor, Prefácio escrito vinte anos depois do romance. J.- K. Huysmans (1903) . O viés crítico continua, o leitor pode ler os comentários de vários autores, entre eles, Zola, Mallarmé, Max Nordau, e o trecho de O retrato de Dorian Gray, onde Oscar Wilde se refere ao livro de Huysmans .

Importante dizer que  Des Esseintes analisa várias obras ao longo da narrativa, algumas, inclusive, dos autores citados, mas não fica restrito à literatura, as artes pintura, a música também lhe merecem atenção. Des Esseintes, extremamente culto e libertino tinha como preferência, em se tratando de literatura, a decadentista, apreciava poucos autores, não seria exagero que se resumiria a Mallarmé, Baudelaire, Paul Verlaine e Edgar Allan Poe.

Mas quem é Des Esseintes?

Descendente de nobres, casamentos consanguíneos arruinaram a família, frequentou escolas jesuítas, adulto continuava admirando-os embora ateu. No momento, Des Esseintes completara  30 anos via-se em total paralisia, nada era capaz de motivá-lo, o tédio, o mal do século, o spleen, o abandonava apenas quando sua imaginação o fustigava com supostos problemas que, em acessos histéricos, pareciam-lhe insolucionáveis.

Um homem fino, dono de um rigor estético que o leva a desprezar  a mediocridade burguesa e o mercantilismo reinante, cansado de tanta orgia, já vitimado pela nevrose (assim se chamava a  neurose antes da psicanálise), Desseintes deixa Paris e se recolhe, na companhia de dois velhos criados, a uma casinhola  nos altos de Fontenay - aux - Roses, local afastado e sem vizinhos.

Ele farejava uma patetice tão inveterada, uma tal execração de suas, dele, ideias, um tal desprezo pela literatura, pela arte, por tudo quanto ele adorava, implantada, ancorada nesses estreitos cérebros de negociantes, exclusivament preocupados com vigarices e dinheiro e acessíveis tão só a essa baixa distração dos espíritos medíocres, à política, que voltava para casa e se fechava a sete chaves com os seus livros.

 

Breve pausa para refletir acerca do ofício de ensinar...

Eu vi, incrédulo leitor, ninguém me contou. Um professor ensinando a escrever um romance. Dividiu o quadro negro em mais de vinte partes e apontava o que deveria acontecer de modo a criar suspense  e manter o interesse do leitor. Cordatos os pupilos a tudo copiavam. Menos eu, que, nesse episódio não passava de um visitante. Nenhum daqueles atentos alunos, até o presente, escreveu coisa que preste.

Fim da pausa para refletir acerca do ofício de ensinar a escrever um romance.

Às avessas é um romance fascinante por uma série de motivos, mas um deles é extremamente peculiar: o fato de não acontecer nada, absolutamente nada.

Caso você prefira, meticuloso leitor, não acontecer absurdamente nada.

Ao final arrisco dizer que quase acontece. Des Esseintes  ameaça viajar à Inglaterra. Ruma  a Paris sob chuva forte, chegando lá dirige-se a um restaurante inglês, farta-se de comida e de bebida, logo desiste da viagem.

 

Estou saturado de vida inglesa desde a minha partida; seria uma loucura perder, por um desastrado deslocamento, sensações imperecíveis. (…) Vejam - disse, olhando o relógio - , mas chegou a hora de regressar a casa.  - Dessa vez, ergueu-se sobre as pernas, saiu, ordenou ao cocheiro que o levasse novamente à estação de Sceaux, e regressou, com suas malas, seus pacotes, suas valises, seus estojos, seus guarda-chuvas e suas bengalas, a Fontenay, sentindo o esfalfamento físico e a fadiga moral de um homem que retorna ao próprio lar ao cabo de uma longa e perigosa viagem…”

Des Esseintes é o personagem de Des Esseintes, e diante de tão peculiar criatura, duvido que você sinta falta de outro (s), solitário leitor. Dom Quixote seria outro sem Sancho Pança, menos interessante, sem dúvida. O herói de Huysmans tem parentesco com o herói de Cervantes.

O que é movimento em Cervantes transforma-se em passividade,contemplação, análise em Huysmans. O simplório Quixote encontra na arrogância de Des Esseintes o seu contraponto.

Por outro lado, enxugando Às avessas,isso se faz necessário devido aos exageros do autor, o leitor se verá perplexo frente a uma obra com ares de Esperando Godot, de Becket, de O estrangeiro, de Camus.

Nos três casos nos deparamos com o absurdo da existência humana, consequentemente das atitudes humanas, sem esquecer que Des Esseintes sofria de nevrose. Entediado dedicava-se à botânica, mas tédio não é coisa que ofereça trégua e o quixote de Huysmans exige uma criatura que se movimente, com lentidão, bien sûr. Uma tartaruga é a escolhida. A carapaça é coberta de pedras de modo a combinar com a tapeçaria.

Caso você tenha entendido como um reducionismo de parte deste aprendiz enquadrar Às avessas como exemplo do absurdo, perdoe, tentarei melhorar. Que tal um romance existencialista? Apesar da nevrose de Des Esseintes.

Seu desprezo pela humanidade aumentou: compreendeu enfim que o mundo se compõe, na maior parte, de sacripantas e imbecis. Decididamente, não tinha nenhuma esperança de descobrir em outrem as mesmas aspirações e os mesmos rancores, nenhuma esperança de acasalar-se com uma inteligência que se comprouvesse, como a sua, numa estudiosa decrepitude, nenhuma esperança de associar-se a um espírito penetrante e torneado como o seu, de um escritor ou de um letrado.

 

Às avessas é um romance de altíssimo nível, inclua-se a tensão necessária para tal classificação, tensão que o coloca na fronteira, não é bem isso e também não chega a ser bem aquilo, percebe-se um pouco de  naturalismo combinado com um tanto de simbolismo,resultado: obra além das classificações.

Atenção professores fiéis  às regras para se escrever um bom romance! Leiam Às avessas, não percam essa excelente obra, e continuem ensinando o bê a bá do romance. Não faltarão discípulos. Eu garanto.

       
    

 

TRECHO

A fim de desfrutar uma obra que juntasse, de conformidade com os seus desejos, um estilo incisivo a uma análise penetrante e felina, cumpria-lhe chegar ao mestre da indução, a esse profundo e estranho Edgar Poe pelo qual, desde o tempo em que começara a relê-lo, sua predileção não havia podido declinar.

            Mais do que qualquer outro, este era talvez o escritor que correspondia, por afinidades íntimas, às postulações meditativas de Des Esseintes.

            Se Baudelaire havia decifrado nos hieróglifos da alma a idade crítica dos sentimentos e das ideias, Edgar Poe, na senda da psicologia mórbida, esquadrinhara mais particularmente o domínio da vontade.

            Em literatura, sob o título emblemático de  “O Demônio da Perversidade”, fora quem primeiro espreitara esses impulsos irresistíveis que a vontade sofre sem os conhecer e que a patologia cerebral agora explica de maneira mais ou menos segura; quem primeiro, também, havia, se não, assinalado, ao menos divulgado a influência depressiva do medo que age sobre a vontade, assim como os anestésicos que paralisam a sensibilidade e o curare que anula os elementos nervosos motores; era sobre este ponto, esta letargia da vontade, que fizera convergir os seus estudos, analisando os efeitos de tal veneno moral, indicando os sintomas da sua marcha, as perturbações que começavam pela ansiedade, continuavam pela angústia, rebentando por fim no terror que entorpece as volições, sem que a inteligência, conquanto abalada, vergue-se.

            A morte, de que todos os  dramaturgos haviam abusado tanto, ele a aguçara de certo modo, tornando-a outra, nela introduzindo um elemento algébrico e sobre-humano; na verdade, porém, era menos a agonia real do moribundo que ele descrevia, do que a agonia moral do sobrevivente obsedado, diante do lamentável leito, pelas monstruosas alucinações

que a dor e a fadiga engendram.

 

 


 

AUTOR

Joris-Karl Huysmans nasceu em Paris em 1848, filho único de pai holandês e mãe francesa. Depois de uma infância marcada pela morte do pai e pelo segundo casamento da mãe, tornou-se funcionário administrativo do Ministério do Interior, onde trabalharia durante 32 anos. Passou a primeira metade da Guerra Franco - Prussiana no hospital, acometido de disenteria, e a segunda metade sob fogo cerrado, na capital sitiada. Quando se fez a paz, retornou ao Ministério. Três anos depois publicou seu primeiro livro, Le drageoir aux épices (1874), coletânea de poemas em prosa à maneira de Baudelaire. Voltou-se então para o romance, publicando Marthe (1876), Les soeurs Vatard (1879), En ménage (1881) e A vau - l’eau (1882). À rebours (Às avessas), publicado em 1884 e aclamado por Arthur Symons como “o breviário da Decadência”, marcou sua ruptura com o grupo Médan, de Zola, e o começo de uma tentativa de ampliar o alcance do romance. Seus outros romances são En rade ( 1887), Là-bas (1891), En route (1895) , La cathédrale (1898) e L’oblat (1903). Morreu em 1907

 

 

 

 

 

 

 

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