Feliciano sempre acreditou que
podia mudar o mundo. Desde pequeno tratou de afiar suas ferramentas para a
grandiosa tarefa. Aprendeu filosofia, estudou biografias de gênios da
literatura, da música, das artes em geral. Mergulhou com muita fé em todas as
crenças, beijou os pés do Papa, chutou imagens de Santas, bebeu chás e ácidos,
fez libações e ajoelhou-se na direção de Meca e Machu Pichu, rezou todos os
evangelhos e cometeu também todos os pecados. Preparou-se como ninguém para a
obra máxima de sua existência: mudar o mundo. Mas por onde? Mudar o quê?
Primeiro resolveu salvar as foquinhas das mãos dos japoneses, pois sabia a
crueldade que aquele povo destila em animais indefesos. Resultado: quase lhe
tiram também o couro e Feliciano parou estrategicamente para repensar seus
planos. Viajou para a Amazônia, haveria certamente de impedir o desmatamento e
a matança de botos. Pegou malária, ficou meses na rede, suando frio, delirando,
até que foi desalojado daquela rede pois precisavam das árvores em que estava
amarrada. Feliciano ficou em Manaus por um tempo, lambendo suas feridas e seu
orgulho. Tanta filosofia para pouco resultado. Mas Feliciano não era homem de
desistir fácil assim, não seria uma reles malária a responsável pelo seu
fracasso. Engajou-se como marinheiro num barco de bandeira grega e saltou em
Moçambique cheio de boas intenções: ajudaria no combate a AIDS. Inteligente
como ele só, Feliciano logo dava palestras sobre sexo seguro para prostitutas.
Sentiu-se, pela primeira vez na vida, realizado. Mas o fato é que, esqueceu-se
Feliciano, as prostitutas, já soropositivas, não têm poder algum sobre os
homens que lhe freqüentam as partes. Os casos de AIDS continuaram crescendo,
promovendo, como portugueses modernos, o extermínio de tribos e tribos
africanas. A série de fracassos não foi maior que sua esperança, e Feliciano,
durante muito tempo, julgou-se o salvador do mundo. O que se sabe é que hoje,
depois de muitas frustradas tentativas e um AVC que o faz puxar a perna
esquerda, Feliciano, cinqüentão, sobrevive como assessor parlamentar de um
deputado, amigo de infância. Mora em Brasília, numa quitinete na Asa Norte, que
divide com um amigo poeta, e redige pareceres engajados sobre a questão social
no Brasil e no mundo. Pareceres inúteis, posto que sempre desconsiderados pelo
amigo deputado de uma legenda de aluguel. Batalha feito um louco para provar
tempo de serviço suficiente para aposentar-se. Sei que há homens que lutam um
dia e são bons, outros que lutam muitos dias e são melhores, e outros...blá blá
blá, enfim, há aqueles que, como Feliciano, lutaram uma vida inteira.
Esses...ah, esses a gente conta nos dedos e lamenta sua sorte.
Leonardo, Le Boff.
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