domingo, 15 de abril de 2012

Cowboy Bob está de volta


Aderval Borges
Pelos idos anos 1980, constituímos um grupo de São Paulo mais ou menos nos moldes das diretrizes construtivistas já experimentadas em outro grupo que tivemos em Brasília. Tudo o que não queríamos era fazer teatrão profissional. Durvalino Couto, de Teresina, estava em ambas experiências. Àquela altura, que me lembre, apenas dois grupos paulistanos convergiam para o que fazíamos: o Ornintorrinco e o XPTO.

Mas o primeiro se fundamentava apenas nos musicais de Bertolt Brecht/Kurt Weill. Brecht era apenas uma de nossas referências. O XPTO era um grupo de pessoas muito talentosas que mesclavam um apurado trabalho corporal– com pantomima, mímica e dança – com ótimas soluções cenográficas.

Discutíamos muito o que Brecht nos deixou de legado (não propriamente sua dramaturgia política, mas suas técnicas de treinamento de atores), Gordon Craig/Artaud (ambos convergiram para um conceito alegórico do ator), o suíço Adolph Appia (para quem a cenografia era tudo e o ator apenas com portador de significantes visuais), Grotowski/Artaud (convergiam ambos para o conceito do teatro enquanto ritual) e Vsevelod Meyerhold (que unia todos acima em espetáculos frenéticos que, suponho, só seriam comparáveis, no Brasil,às excelentes duas montagens feitas aqui pelo diretor argentino Victor Garcia).

Certa feita estávamos em entusiasmado bate-papo num boteco sobre esses caras todos, quando de uma mesa ao lado veio a questão: “E Bob Wilson?” Era Luiz Roberto Galizia, um dos fundadores do Ornitorrinco. Galizia falou um monte sobre Wilson naquele dia. Depois nos emprestou estudos sobre o diretor americano e nos deu cópias de apontamentos seus para a montagem do espetáculo monstrengo (durava 12 horas) chamado The life and times of Joseph Stalin. Esse espetáculo foi apresentado em 1974, em São Paulo e Rio, e influenciou vários diretores brasileiros, dentre os quais Anthunes Filho e Gerald Thomas.

Wilson não trabalhava com atores convencionais; e essa era uma de nossas metas. Via o espetáculo como um processo criativo em grupo, sem hierarquias e sem predominância do texto. Era tudo o que vínhamos discutindo. A partir daquele momento o gringo entrou para nossa lista de referências. 

Wilson veio várias vezes no Brasil. Numa delas pude acompanhar uma palestra dele no Sesc Vila Nova, em São Paulo. Era uma figura completamente atípica para a meia dúzia de interessados que se dispuseram a ouvi-lo. Com seus quase 2 metros de altura e jeitão grosseiro, mais parecia um cowboy desses que vêm ao Brasil montar em bois nas festas de peão. Naquela conversa falou mais sobre John Cage, que morrera há pouco tempo, do que sobre seu próprio trabalho.

Ele agora volta para apresentar A última gravação de Krapp, de Samuel Bekett, na qual trabalha comoa tor. Suas respostas a uma entrevista publicada na edição de O Estado de S.Paulo de 25/3 são idênticas às que deu ao pequeno público que foi ver sua palestra no Sesc Vila Nova (minha memória de peixe não me permite recordar o ano).

Diz que não faz propriamente teatro, mas uma arte abstrata destinada ao palco, que reúne várias linguagens e meios de expressão, incluindo interpretação de atores. O modo como trabalha continua o mesmo: reúne pessoas diferentes – algumas escolhidas, outras ocasionais – e passa a trabalhar com elas como se fosse fazer uma comida coletiva. Põe alguns ingredientes na mesa, sem a melhor ideia do que irá resultar, e cada qual passa a dar o direcionamento, conforme seus talentos e interesses.

Por que, com raras exceções, nunca trabalha com atores profissionais. “Qualquer um pode ser ótimo ator. Bom ator é o sujeito que está bem com aquilo que irá fazer. Mesmo que nunca tenha feito aquilo, se ele se sentir confortável com seu corpo, tiver boa intuição e capacidade de discernimento, terá capacidade natural de assimilar as técnicas e se comunicar com a plateia. Isso é o bastante.”

Embora a crítica (inclusive nacional) o coloque na categoria dos diretores herméticos, difíceis, diz que não há mistério algum no que faz. “Meus espetáculos se constituem essencialmente de movimentos e luz. É tudo muito simples.” Sobre a evolução do seu trabalho, acha que isso não existe, porque sempre quis fazer o mesmo espetáculo. “Muda a forma, mas é sempre a mesma coisa.” Diz que faz mais ou menos como Proust, que dizia sempre escrever o mesmo romance. E que aparentemente está sempre mudando porque trabalha com pessoas diferentes; ou seja, são elas trazem novidade ao que faz.

Para ele, o principal de sua arte não é o resultado final, mas as pessoas com as quais trabalha no momento. Já fez parcerias com John Cage, Willian Burroughs, Allen Ginsberg, Tom Waits, David Byrne, Phillip Glass, Lou Reed e muitos outros, mas “nenhum desses caras” são mais importantes que as pessoas não conhecidas com as quais trabalhou.

Quando a mídia o alça a algum período de fama, dá um jeito de puxar o carro e sair de cena. Foi assim que se enfiou numa cidade do interior do Canadá para montar um espetáculo que tinha como parceiros de criação e atores uma dona de casa, um lenhador e um guarda florestal. Sua monstrenga The life and times of Joseph Stalin não envolveu nenhum militante de esquerda. Foi produzida numa dessas retiradas durante um período de convivência de dois anos com um garoto autista– segundo ele “um gênio” – que nunca tinha ido à escola e não saía de casa.

Considera-se uma pessoa com “algumas deficiências”. Diz que tem boa intuição, mas que é muito lento para compreender as coisas (embora quando as compreende é “com certa clareza”) e péssimo para tomar decisões. Razão pela qual se deu muito mal no sistema de ensino americano. Grandalhão, gago, caipira, tímido... era sempre o idiota da turma. A família o mandou para a Europa. Também foi um fiasco nas escolas de lá. Então achou que tinha de superar aquilo de alguma forma. Aproveitou a estadia europeia para entender o que levara à arte moderna (dada, cubismo, cubo-futurismo, etc.), à poesia de Mallarmé e à música atonal. Também via muito cinema (Charles Chaplin); mas teatro, quase nada.

Gosta muito de Samuel Beckett porque, do seu ponto de vista, ele nunca foi um dramaturgo. “Beckett não escreve textos, escreve silêncios e imagens.” Acha que os textos do irlandês remetem a coisas muito primárias e que as pessoas não o entendem porque elas, sim, é que são complexas. Acha que os personagens de Beckett são tragicômicos. Ao encontrar com o dramaturgo, ficou muito feliz de saber que ele também adorava Chaplin e Buster Keaton.

Diz que detesta atuar. Só está atuando na Última gravação de Krupp porque é um texto de Beckett e não apareceu ninguém para fazer o papel. Também sentiu necessidade de ir ao palco para melhorar sua performance na direção. Mas que prefere assistir aos espetáculos e que talvez só por isso se tornou diretor. De qualquer forma, acha que qualquer pessoa que trabalha em uma de suas montagens pode assinar a direção.

Assim como fazia Grotowski, ele mantém com a grana que ganha um centro técnico, chamado Watermill Center, no qual trabalham pessoas “não artistas com vários interesses”. Não necessariamente em seus espetáculos. Diz que, atualmente, o centro congrega cerca dezenas de pessoas de todas as idades, de várias nações, com credos, idades e classes sociais diferentes. “Nós trabalhamos de maneira oposta às universidades, que são departamentalizadas“. O Watermill Center nem tem sede própria. “Está sediado no país onde se encontra no momento.” Em 2013 e 2014 pretende instalá-lo no Brasil. O que fará por aqui? “Sei lá, vai depender dos brasileiros.”

O velho Bob está com 70 anos. Chamam seu teatro de “minimalista”, mas ele próprio nunca usou a expressão para definir o que faz. Teses e mais teses foram escritas sobre esse sujeito que não dá a mínima para o conhecimento acadêmico.

Continua com a mesma aparência tosca, honesta, avessa ao estrelismo de quando o vi no Sesc Vila Nova. Depois de Meyerhold, Brecht, Grotowski, Appia, Artaud e Craig não conheço ninguém tão interessante quanto ele no teatro das últimas cinco décadas (as que vivi). Talvez Victor Garcia, mas este a esquizofrenia pôs a nocaute muito jovem, após ter montado cinco espetáculos geniais, dois deles no Brasil: O balcão e Cemitério de automóveis.

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