domingo, 29 de abril de 2012

As pegadas do gênio



FABIO SILVESTRE CARDOSO


Afonso é um andarilho. Passeia — como sugere o título do livro de Luciana Hidalgo, O passeador — pelas ruas de um Rio de Janeiro ainda em franca transformação. Mais do que um crítico intransigente na periferia do capitalismo, trata-se de umoutsider que percebe a cidade em transição: no romance de Hidalgo, ele será um personagem; na história da Literatura Brasileira, será Lima Barreto, autor, entre outros, de Triste fim de Policarpo Quaresma e Recordações do escrivão Isaías Caminha. Obra oriunda de uma criativa imaginação literária (o argumento fundamental do romance, a vida de Afonso antes de ser Lima Barreto, é algo original por aqui), o livro de Luciana Hidalgo possibilita aos leitores, logo de cara, um conhecimento do universo ao qual o escritor pertencia. Oferece, nesse sentido, a chave de entrada para um ambiente que muitas vezes só é reconstituído graças aos livros de história da República Velha.

A motivação para tanto parece óbvia. Afinal, um dos “principais legados” da Semana de Arte Moderna em particular, e do modernismo em geral, foi efetivamente esvaziar de significado a geração que a precedeu. Note, leitor, que estamos diante de uma agenda cultural que obedecia, como poucas vezes visto por aqui, uma espécie de poética, a saber: a literatura brasileira e os demais segmentos artísticos deveriam, segundo essa perspectiva, romper com a tradição e com as movimentos que rezavam pela cartilha eurocêntrica do mundo. É bem verdade que aí reside uma bela contradição, afinal, alguns dos expoentes do modernismo brasileiro, sobretudo na primeira fase, tiveram sua formação e educação sentimental na Europa. Ainda assim, conforme exigia o manifesto de Oswald de Andrade, souberam superar essa influência, removendo o beletrismo da produção cultural brasileira. E é aí que a importância de um escritor como Lima Barreto se revela, uma vez que, mesmo antes dessa agenda (no começo do século 20), o autor havia se separado, do ponto de vista da linguagem, de certo artificialismo da produção cultural — para citar alguns nomes, Coelho Neto, Olavo Bilac. Com isso, a prosa do autor, contrastando de alguns de seus contemporâneos, é fluida, sem conter o rebuscamento oco da República dos bacharéis.

Nesse ponto, o livro de Luciana Hidalgo presta homenagem à altura ao escritor Lima Barreto, haja vista que a autora também se propõe a escrever de forma clara e lúcida, sem descuidar de certo apuro na forma. É bom que se diga: dos escritores brasileiros contemporâneos, incluindo aí alguns premiados, poucos conseguem manejar o texto em prosa de forma a um só tempo bem elaborada e com recurso de imaginação literária. Dito de outra maneira, embora o tema do livro em si seja bastante pertinente, é pela forma que a narrativa conquista o leitor. Vale a pena observar, a título de exemplo, a abertura do livro, dessas capazes de conquistar o leitor à primeira vista:


Afonso arrasta os pés pela terra seca, deixando uma trilha de pegadas displicentes. Tanto calor a essa hora o faz pensar num deserto desconhecido. Alheio ao sol, ele avança sonolento, olhos fixos no chão. A cabeça, sem pensamento, deixa-se conduzir pelos calcanhares ligeiros, estes sim sob o comando do corpo. Pousam, levantam, pisam em pontes improvisadas. Ao alcançar o trecho calçado, ele enfim encara a paisagem à sua frente. Tudo aí é de uma solidão cimentada. Está diante da avenida Central que, em construção, rasga, o centro do Rio de Janeiro num sorriso esburacado e perverso.
Com efeito, o parágrafo acima é a materialização de uma descrição bem estruturada, capaz de fazer com que o leitor observe efetivamente o passo a passo desse personagem. Na leitura, nota-se ainda como o narrador discorre sobre as partes do corpo deste Afonso (pés, cabeça, olhos); de modo semelhante, está evidenciada uma espécie de prosa poética, fruto, sem dúvida, de um envolvimento mais próximo com o universo da palavra. Isso não é pouco, mesmo em tempos, como os de agora, em que todos desejam posar como escritores. O narrador do romance de Luciana Hidalgo é muito mais do que uma testemunha de um gigante literário em formação. Trata-se, isto sim, de uma voz que se estabelece sem medo da grande referência que representa Lima Barreto para a literatura brasileira.


À medida que a narrativa avança, o leitor observa como surgiram os temas que forjaram a literatura de Lima Barreto. O artificialismo vazio; a estrutura social hierarquizada que remetia ao Antigo Regime, mesmo em tempos republicanos; a estrutura rígida do governo que acabava de chegar ao poder. Esses e outros pontos tornaram a prosa do autor de Clara dos Anjos o contra-exemplo da Belle Époqueda capital federal. Nesse cenário, escritores desprovidos de talento genuíno ascendiam ao estrelato do grand monde das letras graças aos conchavos, enquanto Afonso, esse personagem idealizado, fica à margem, entre o riso e a melancolia, passeando pelas estantes, procurando as leituras que servirão de referência à sua obra.


Olhar atualEspecialista em literatura brasileira e pesquisadora da obra de Lima Barreto, Luciana não se vale desses títulos para compor esse livro. Em verdade, a não ser pelo enredo contemporâneo, o romance certamente poderia ser assinado por outro escritor que não tivesse as mesmas credenciais acadêmicas para tanto. Longe de ser um problema para a autora, trata-se, sim, de demonstração de sua capacidade de imaginação ficcional. Há que se notar, entretanto, que o livro utiliza como pressuposto um olhar contemporâneo e cínico, inventando um personagem que existe à frente de seu tempo. Em outras palavras, enquanto a literatura brasileira estava atenta a um momento extraordinário, com escritores fabricando uma cena intelectualizada artificialmente num país periférico, o Afonso de Luciana Hidalgo, como que repetindo o Lima Barreto visto pela lupa de nossos dias, é um satirista e um cínico em formação na melhor “tradição da pós-modernidade”.

FABIO SILVESTRE CARDOSO
É jornalista. Vive em São Paulo (SP).

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