quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O Menininho... e eu.


Ana Cecília Salis

Não posso me esquecer de um daqueles dias... Estava chovendo. Não muito, mas o suficiente para embaçar o pára-brisas do meu carro e tudo lá fora parecer menos molhado do que eu... do que meu choro molhado, um lamento embaçado desses que turva as vistas...

Pois não posso esquecer... era um daqueles dias de uma tristeza derramada, daquelas que minha filha tinha medo, pois via meu peito côncavo como se perfurado por um punhal ...

Estava parada no sinal vermelho e, imediatamente antes de abrir, um menininho de rua me aborda para tentar pedir-me algo. Um pequenino menino de rua que me aborda no atraso da primeira marcha e a quem vejo passar pela janela do meu carro me olhando.

Pois não posso esquecer... Por um momento foi nele que prestei atenção. Foi no seu olhar cúmplice de quem conhecia razões de sobra para um choro igual ao meu, que me detive... ainda mais doída.

Por alguns segundos, passei por aquele menininho e o deixei para trás. Do retrovisor do meu carro pequeno-burguês, ainda o vi... dando-me um tchauzinho pequenino, igual ao seu tamanho... e como nos filmes condensados na memória, gravei o que entendi do que dizia seu mexer de lábios... passei por ele e, da minha vida pequeno-burguesa, o vi, molhado e descalço, interrompendo por um instante a sua corrida pela rua, para torcer ligeiramente seu pescoço e me dizer:

“não chora...”

Ignorando o que havia nas diferenças de nossos tamanhos, de nos nossos mundos, de nossa vertical realidade... ele olhou-me de longe , e de cima acenou-me como quem legitima a autenticidade do que viu... éramos do mesmo tamanho naquele horizonte sombrio da existência , onde tudo dói e nada faz sentido...

Pois eu, já habituada àqueles tempos, a desgostar-me da vida de dentro do meu carro pequeno-burguês, encontrei do lado de fora, um pequenino menino de rua, descalço, num dia de chuva... que num gesto comovente de generosidade, me acena e me acolhe sem me pedir mais nada... além de :

“não chora...”

Isso fez sentido...

Então, sorri, agradeci aquela benção, e acenei-lhe de volta. Ele viu, voltou-se para o meio da rua e correu pelo meio dos carros pequenoburgueses de todos os dias. A pedir, quem sabe, pela benção de um olhar... ou pelo pão nosso de cada um de seus dias...

7 comentários:

Heloisa Aguiar disse...

Lindo! Adorei! Feliz Natal querida!
(comentei em lugar errado...)

bj

Lola

Angela Batista disse...

Ana,

Mto bonito...

Angela

Sergio Meirelles disse...

Muito lindo! Como sempre...

bj

Sergio

Maria Claudia disse...

Lindo!!!!

Tb não chorei...

Maria

Anônimo disse...

Prima querida,

muito lindo, um dos que mais gostei. Mostra como nossa dor pode ser insignificante diante do sofrimento alheio, diante da dor de uma criança que não tem o que comer, que não tem o que esperar da vida a não ser esmolar e desejar ser olhado com atenção para saber que ao menos existe. FELIZ 2010.

Anônimo disse...

Esqueci de me identificar. O anônimo aí em cima sou eu, Maria Batriz Salis Poglia, de Porto Alegre, RS.

Vivian disse...

Gostei muito! Quanta compaixão, hem! E gostei de outra coisa: a prosa vai tomando conta, com toda a poesia que ela carrega, sempre! Vou fazer novos desafios a você, hem! Sobre o que mais você vai escrever? Sempre temas controversos, polêmicos, abertos, que não se exaurem com facilidade. Enfim, é 2010, sentirei saudades da sua presença no Nise, aquilo lá vai perder a graça facinho facinho, a não ser que as pessoas por ali resolvam ser mais humanas, demasiado humanas (mas estou descrente, sou pessimista e acho deveras difícil)!