quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Identidade Peninsular





Maneco Nascimento


Muitos ecos de mares da Espanha e latidos do cão andaluza romperam as barreiras do tempo e da geografia e aportaram nos portos brasileiros, com uma irremediável presença, feito tatuagem. As culturas se conjugam, se afunilam e guardam-se nas melhores fusões para elementos de novas interpretações e vivências propriamente.


Para dados históricos e contextuais de memória e presença das sociedades construídas, nem sempre seria fácil separar o bom trigo do necessário e, colhido, posto à mesa para degustação quando o assunto é cultura. Sempre será devorado, para alguns em maiores mesas e maior requinte, para outros a partir da preparação em primitivos fornos de barro. O que nunca poderá se superar será o sabor da conquista do prato, a solução da sobrevivência.


Seja o pão francês; o ázimo com tempero moçarábico, assado em fornos das plagas do Tejo; o feito às casas gitanas, aquecidas a fogo de lenha, ou ainda as nunca desprezadas massas, preparadas nas cozinhas italianas, toda comida será absorvida e reconstituída em novas investidas da fome das fomes de sobrevivência das espécies sociais.


Desde a diáspora africana até chegar-se às novas geografias convencionadas, tudo conspirou ao edito agregador dos territórios das civilidades. A língua, a pátria, a casa, a roupa, a mesa, o gene e a linguagem se afunilaram na gleba peninsular para ares ibéricos de reinvenção da sociedade das novas sociedades.


Absorvem-se as relíquias sociais e os traços particulares e culturais que desenham as identidades em fluxo constante de confluência e divergência, transgressão e interdito, movimentos irretrucáveis da natureza humana, mesmo que da margem do escorpião.


Federico Garcia Lorca, poeta e prosador espanhol com rigores de brilhantismo concentrado, determinou para sua época uma literatura rica e uma personalidade forte para combate do solfejo das tiranias. Também idealizou o desejo constante de ater-se às liberdades, fator intrínseco da verve individual e social.


Entre as preces ciosas de denúncia e revelação de culturas milenarmente cercadas de tradições, construiu a “A Casa de Bernarda Alba” para tratar das heranças primitivas, do determinismo social intrigado numa casa de mulheres em luto. Sexo, tradição de rito, desejos contidos e leis surdas particularizam circunstâncias que intrigam, ferem e matam os heróis da liberdade.


Para uma montagem de leitura particular do Grupo Harém de Teatro, o psiquiatra piauiense Edmar Oliveira, radicado no Rio de Janeiro, constatou, após ver um ensaio geral, que a dramaturgia desenvolvida pelo Harém não seria uma Bernarda, da Espanha, mas de traços genuinamente brasileiros.


Segundo o médico, foi conseguido um resultado da aldeia para o global, em que as personagens representariam a sociedade de Teresina, com suas travas de limites à convenção, muito bem repercutidas por aqui. Disse, Edmar Oliveira, ter visto representado personagens de sua memória afetiva. Há Lorca reproduzido para a cultura nordestina e piauiense, sem perder-se do seu traço universal.


Gaudy, apontou que a autêntica cultura seria a que reproduz a própria raiz. Não há como definir a cultura brasileira e sua representação sem que apresente seu próprio traço, não excludente do mapa genético cultural recortado da lâmina do também sangue espanhol. As culturas de lá e cá se aglutinam e se afirmam à cepa do genoma comum para latins dispersados.


A Bernarda, do Harém, tem sangue andaluz e talvez seja o que faça com que a aldeia local esteja constantemente vinculada ao movimento de rotação com a aldeia global da Bernarda, de Lorca, e possa surgir como resposta à constatação do médico psiquiatra de que as identidades de memórias afetivas sejam puramente locais.


“A Casa de Bernarda Alba”, montagem do Grupo Harém de Teatro, pode ser o retrato de identidades que se completem, se repitam ou simplesmente sejam a representação de si mesmas.


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em Teresina, tive oportunidade de debater a peça em cartaz do Grupo Harém, dirigida por Arimatan Martins.






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