quinta-feira, 21 de agosto de 2008

O dia em que matei um sanfoneiro

Cineas Santos


Menino, como todos os moleques da minha aldeia, eu tinha um sonho recorrente: arribar para São Paulo, ganhar dinheiro graúdo, botar um dente de ouro, comprar uma sanfona vistosa e regressar à terrinha falando o dialeto “paulistês”. Na verdade, o que eu queria mesmo era encontrar um meio de chamar a atenção das mulheres, ariscas como juritis novas. Com o tempo, o irmão mais velho foi, os primos foram, os amigos foram, e eu, cada vez mais fincado em minha aldeia, não fui. Descobri minha indeclinável vocação para pedra, pedra recoberta de limo de tanto não rolar. Os outros iam e voltavam, trazendo ou não sanfona. Eu, a exemplo de seu Liberato, irremovível, permanecia na aldeia. Havia entre mim e o chão um grude, um visgo que me impediam de alçar vôo...


Um belo dia, o irmão regressou trazendo uma sanfona Scandalli, vermelha como brasa de angico; fogosa como uma potranca no cio. O irmão não tinha dente de ouro, mas usava um bigodinho atrevido, empapava o cabelo de Quina-Petróleo e conquistava as mulheres com a mesma facilidade com eu fisgava piabas no velho açude da Aldeia. Decidi, então, tornar-me sanfoneiro. Abarquei a sanfona, judiei dela por duas ou três semanas e não saí do dó. Uma noite, ouvi, no rádio de um vizinho, o Sivuca executar um frevo. Morreu ali o sanfoneiro que despontava em mim. Desacorçoado, percebi que, por mais que eu tentasse, não chegaria àquele nível de excelência e menos que aquilo não me interessava.


Antes que me perguntem por que estou me lembrando dessas bobagens agora, explico: na semana passada, por muito pouco, não matei um velho e querido sanfoneiro, o Hermínio Moraes. Se vocês ainda se lembram, publiquei, neste espaço, uma crônica “sentimentosa” sobre alguns amigos são-raimundenses que, sem minha permissão, partiram para o reino do Benvirá. Dois deles – o Egídio Nascimento e o Hamilton Barreto – eram músicos. Quando a crônica foi publicada, descobri que esquecera justamente o Hermínio, um cabra da peste que, escorraçado de Pernambuco, perambulou pelo mundo afora até aportar em São Raimundo Nonato. Não me lembro quem prestou o desserviço de avisar-me que o velho sanfoneiro morrera no final do ano passado. Se bem me lembro, mandei até rezar missa pela alma do infeliz.


Chego a São Raimundo e a primeira notícia que recebo do Jorginho França é a de que o Hermínio, depois de uma cirurgia de catarata, já está pronto para fazer o que mais sabe: tocar bem. Fiquei tão feliz que mal me contive. O Hermínio é nosso parceiro há muito tempo. Em Teresina, num show inesquecível, tocou o “Brasileirinho” com o violonista Erisvaldo Borges, coisa de saltar faíscas no ar... O Hermínio, antes que eu o “matasse”, estava escalado para gravar conosco o CD “A Cara Alegre do Piauí”, que deve sair no segundo semestre deste ano.


Incontinenti, saí com o Jorginho à caça do cabra. Encontrei-o meio baleado, mas vivo e lampeiro. Magro como um cancão depenado, com uns óculos de cego de feira, Hermínio me prometeu que não morrerá antes de gravar o CD e ouvir “sua” música na Rádio Alternativa. Se ele descumprir o que prometeu, aí eu volto a São Raimundo acabo com a raça dele.

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Tirado do "Oficina da Palavra", espaço que você pode visitar clicando ali embaixo.

Um comentário:

blogger Adão Tropeiro disse...

É verdade prof. Cineas Santos, conheci o sanfoneiro Herminio, é um grande artista, estive com ele emSão Raimundo Nonato em 2009.
Adão de Sousa Lina Seu admirador, já ganhei livos de poesias em Teresina, 2008, lembra?.
abraço Adão-Sp.