Edmilson Caminha
Quando morreu, em 1993, Carlos Castello Branco era, sem dúvida, o mais influente e prestigiado nome do jornalismo político brasileiro. A crônica diária que por trinta anos assinou no Jornal do Brasil, a famosa "Coluna do Castello", tinha entre os seus milhares de leitores não apenas o cidadão comum, a quem informava com segurança e clareza, mas também deputados, senadores e figuras importantes do governo, que começavam o dia orientando-se pelo comentário do articulista. Porque Castellinho, como todos o chamavam, ia além da simples exposição dos fatos, da apresentação objetiva dos acontecimentos: antecipava-os, sob a luz da experiência, da agudeza ou da mera intuição. Assim, reportava a cena política ao mesmo tempo em que participava dela, tal a força com que a sua opinião ressoava no âmbito dos três poderes.
Chegou ao máximo de discorrer sobre o vazio, quando não deixou de escrever um só dia durante os dez meses de 1969 em que a ditadura amordaçou a Câmara e o Senado. "Naquele período, o Congresso só existiu na minha coluna", reconheceria depois, contrariando a modéstia que lhe era própria. Em 30 minutos, batia as 75 linhas de um texto que primava pela substância, pelo rigor e pela concisão. "Vou ficar com aquele que escreve como quem manda bilhetes para a lavadeira" — foram as palavras de Orlando Bonfim, de O Estado de Minas, quando resolveu contratar o piauiense feio, sem pescoço, que se tornaria o maior entre os grandes jornalistas da sua geração. "Meu projeto de vida era ser escritor", revelaria mais tarde, desejo que o levaria a publicar Continhos brasileiros, em 1952, e o romance Arco de triunfo, em 1958. Se não se realizou como o bom ficcionista que poderia ser, satisfez a vocação no território da política, onde certamente encontrou personagens mais estranhos do que os inventados na literatura...
Muitos já depuseram sobre Carlos Castello Branco, reconhecendo-lhe a inteireza moral, a isenção profissional, os princípios éticos que lhe nortearam a carreira. Poucos, no entanto, destacaram o seu fino senso de humor, o talento de grande causeur, o gosto pela observação irônica, a verve com que enriquecia as histórias que contava. Meio casmurro, expressão pouco amistosa, Castello divertia o pessoal com a lembrança dos episódios que vivera, como testemunha e como protagonista. Também, pudera: por 54 anos freqüentou os bastidores do poder, que conhecia como ninguém; passou por onze presidentes da república — na verdade, os onze passaram por ele; era lido por ditadores e democratas, ouvido por militares e civis, e encontrou assunto para escrever mais de dez mil artigos. Companheiros de redação nunca o viram telefonar para presidentes e ministros — eles é que o procuravam. Diferentemente da maioria dos colegas, não vivia à cata de notícias porque as notícias iam até ele. Como aquelas comadres do interior, sabia da vida de Deus e o mundo sem arredar o pé de casa...
Em 1945, cada um dos nossos grandes jornais tinha um censor particular. Era ele a diferença entre o que se apurava e o que se divulgava, entre o que se descobria e o que se dizia. Secretário-geral de O Estado de Minas, Castello não agüentava mais aquele intruso, a vetar e riscar o que bem quisesse. Decidira corrê-lo dali, só não sabia como: apelar ao interventor? oficiar ao presidente? Mais fácil cortar caminho e mandá-lo embora de vez. Certa manhã, mal deixou que o sujeito entrasse: "Olhe aqui, Ataliba: se você quiser ler o jornal, a partir de hoje vai ter de comprá-lo na banca. Não queremos mais os seus serviços, não precisa nem tirar o paletó". E Ataliba nunca mais apareceu, definitivamente enxotado pela indignação do repórter que enchera as medidas com a censura do Estado Novo.
Eleito presidente, Jânio convidou Castellinho para que ocupasse a secretaria de imprensa do governo. "Vou pedir-lhe emprestado por seis meses", ouviu daquele que já parecia disposto à renúncia. A experiência foi rápida, mas bastante para que o jornalista percorresse os labirintos daquela natureza tão complexa: "Jânio governava voltado para a opinião pública. Transformava todos os despachos em bilhetinhos. Depois, o Zé Aparecido e eu percebemos que também podíamos escrever alguns, que ele assinava... Fiz um que deu bode. Recebi um pedido do Piauí pleiteando que se acelerasse a obra de um novo aeroporto. Isso foi no começo de junho de 1961, e em julho o Jânio iria a uma reunião em Teresina. Redigi um bilhetinho ao Ministro da Aeronáutica, assim: "Senhor Ministro: quando pousar, em julho, no aeroporto do Piauí, quero descer na nova pista." O ministro apresentou o pedido de demissão, porque não daria para inaugurá-la a tempo. O Jânio era curioso: como a obra não poderia mesmo estar pronta, simplesmente transferiu a reunião para São Luís — só para não contrariar o bilhetinho... Ele era muito atento à palavra das suas determinações".
E o 25 de agosto, dia seguinte ao do soldado, que tanto problema nos causou? Nem Castello, que sabia de tudo, entendeu a confusão: "Pouco depois da renúncia, dei uma entrevista em que dizia não saber por que Jânio renunciara. Ele então me mandou um bilhetinho estranhando que eu, como antigo secretário de imprensa, tivesse declarado aquilo. Estava certo de que eu sabia a razão. Mas como poderia saber, se ele nunca me disse?" Era assim o ex-presidente, que bem compreendeu a eficácia com que escrevia o colaborador: "a sua pena é uma flecha que muitas vezes provoca dores agudas".
Veio Jango, os militares deram o golpe e o jornalista pagou por exercer o seu papel: "Na noite de 13 de dezembro de 1968, comemorávamos em casa o aniversário de minha mulher. Quando ouvi a notícia do AI-5, pensei: vão me prender; mas como estou muito cansado, vou dormir. Não deu outra: às seis horas do dia seguinte, um agente do Dops prendeu a mim e ao Otacílio Lopes, um jornalista da Última Hora. Fomos os primeiros a ser presos em Brasília. No quartel da Polícia do Exército, um tal coronel Epitácio, comandante da unidade, me viu e disse: a que devo a honra da sua visita? Eu respondi: coronel, deve haver um engano; não costumo visitar ninguém a essa hora. Ele ficou desapontado. Então espere aí que eu vou ver o que é que há, disse. Foi e não voltou mais".
Em 1972, Castello sofreria o primeiro infarto. Na UTI, à enfermeira que o consultou sobre o que desejava para comer, pediu "um suquinho de liberdade". E perguntou se os fios que o ligavam aos aparelhos haviam sido instalados pelo SNI... No dia 20 de maio de 1993 soube, na maca em que era conduzido para o centro cirúrgico, que Itamar Franco demitira Eliseu Resende do Ministério da Fazenda. Passado o efeito anestésico e sem condições de falar, pegou um pedaço de papel e rabiscou a pergunta: "quem mais caiu?" Morreria onze dias depois — muito a contragosto, supõe-se, por ter de afastar-se da profissão que desempenhara durante 54 anos.
Na dimensão do infinito para que passou, estava à sua espera um comitê de notáveis em que se distinguiam Getúlio, Juscelino, Jango, Jânio, as quatro estrelas do primo Castello, Teotônio, Afonso Arinos, Tancredo, Ulysses... Ao vê-los reunidos, a primeira idéia foi esclarecer se havia mesmo chegado ao céu. Lembrou-se, porém, de que acima de tudo era um repórter político, e foi logo perguntando: "tem eleições aqui?"
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Edmilson autorizou a reprodução de:
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Um comentário:
Muito bom rever seu artigo do Humor do P. Castelinho q é como não existisse tempo embora comemora 20 anos de ausência.SUCESSO CASTELLINHO FAZ PARTE DA NOSSA HISTÓRIA DO PAIS.SUCESSO
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