domingo, 10 de janeiro de 2016

VIVA A VAIA

poema de Augusto de Campos


(Paulo José Cunha)

A vaia é absoluta. Não existe vaia relativa, meia vaia, vaia e meia,  apenas vaia, pequena ou grande, curta ou longa: vaia. A vaia é incontrastável, e não comporta argumento em sentido contrário. Correção: existe, sim, um único argumento contra a vaia: a força. Mas como força não é argumento, retornamos ao ponto inicial: é impossível argumentar contra a vaia.

A vaia é a mais democrática ação coletiva. Seu poder reside na fragilidade de quem vaia. Os autores de uma vaia não querem bater, machucar nem matar: querem... vaiar.

Axioma: se toda vaia é contra e não existe vaia a favor, igualmente não existe anti-vaia.

A vaia é sempre dirigida a um núcleo de poder, corporificado no ente que o exerce. Por isso não existe vaia contra o fraco ou o oprimido. Detentores de poder nem opressores vaiam, mas são passíveis de ser vaiados.

Toda vaia é coletiva, não se tem notícia de vaia individual. Portanto, toda vaia expressa uma inconformidade de natureza social, e assim precisa ser entendida e analisada. A vaia nunca pode ser debitada a um “pequeno grupo de agitadores”. Se assim fosse, qualquer pessoa no interior de uma multidão reunida sem motivação reivindicante seria capaz de mobilizá-la e fazê-la voltar-se, em uníssono, contra algum núcleo de poder. Tal reação não é automática. Para eclodir e se converter no incêndio da vaia é preciso que o rastilho encontre condições favoráveis. Seu combustível é algum tipo de inconformidade, explícita ou latente. Sem isso, o “puxador de vaia” é sancionado pelo grupo, silenciado ou excluído.

A vaia é a expressão inconsciente de um mal-estar consciente ou inconsciente. Ela expressa, na forma de onomatopéia uníssona, um sentimento coletivo de difícil expressão verbal. A propósito: a vaia prescinde da palavra. É comunicação em estado puro, energia galvanizada instintivamente. 

A vaia só funciona em seu momento. Não tem efeito quando gravada ou relatada. Mas atenção: a vaia reverbera. E tem o incrível poder de se multiplicar em vaias maiores em intensidade e duração se os fatores que motivaram o apupo original não forem identificados e eliminados. 

A vaia é universal, está presente em todas as culturas. Como expressão primária e instintiva, é o mais genuíno produto do inconsciente coletivo. Traduz uma verdade que prescinde de suporte semântico. A vaia é uma reprovação cuja origem se situa no silêncio individual, mas que só consegue se expressar de forma coletiva. É como o galo do poema de João Cabral: “Um galo sozinho não tece uma manhã: / ele precisará sempre de outros galos./ De um que apanhe esse grito que ele/ e o lance a outro; de um outro galo/ que apanhe o grito que um galo antes/ e o lance a outro; e de outros galos/ que com muitos outros galos se cruzem/ os fios de sol de seus gritos de galo(...)”.

Paradoxalmente, a vaia é consagradora: não há registro de vaias contra anônimos. A única exceção a essa assertiva ocorre quando anônimos assumem papéis de agentes de um poder opressor, injusto ou impopular (como aquele alguém que tenta furar a fila ou um policial qualquer numa operação repressiva.  

O aplauso não neutraliza a vaia, apenas a emoldura. E como a vaia é incontrastável e irreversível, o aplauso não é seu contraponto. Pois é possível vaiar um aplauso, como é igualmente possível aplaudir uma vaia, mas nunca vaiar uma vaia, neutralizá-la ou convertê-la em aplauso.

Por último: o aplauso passa, mas toda vaia é eterna e inesquecível. 

-------------------------------------------------------------

Paulo José Cunha é jornalista




Nenhum comentário: