Bananas pra dar e vender: S. Tomé, Roxa, Pacovã e Velhaca |
(Aderval Borges)
Em meados dos anos 1980 deixei um cômodo emprego na assessoria de imprensa de uma grande instituição financeira sediada em São Paulo, capital, e investi o que não tinha na montagem de um viveiro para produzir mudas de seringueiras. Minha pretensão era vender parte das mudas para pagar o empréstimo de um equipamento de irrigação, cobrir os gastos de formação do seringal que tinha a intenção de plantar, pagar meus quatro ajudantes e sobreviver com o que sobrasse. Só deu para iniciar o plantio do seringal. A então ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Mello, baixou uma Medida Provisória para segurar todo o dinheiro dos fazendeiros aplicado nos bancos e ninguém tinha como comprar minhas mudas.
Vivia atropelado com muitas dificuldades, principalmente financeiras, e mal conseguia dormir com tantas preocupações. Amor é amor! Rosana deixou seu trabalho em Americana e veio morar comigo na casinha do sítio, na qual cresci e da qual só saí quando chegou a hora de rumar para os estudos na cidade. Numa pitanga das piores, ela aprendeu a fazer bijuterias e por um bocado de tempo seus colares, brincos e outras peças amenizaram um pouco nosso sufoco econômico. Como minhas vendas estacaram por culpa da porralouca da ministra da Fazenda, tive de dispensar todos que trabalhavam no viveiro e, na medida do possível, tentei fazer o trabalho deles sozinho. Claro que não tinha tempo nem para comer. Perdia horas de sono planejando o monte de tarefas que teria para o dia seguinte.
Para piorar ainda mais as coisas, passei a receber visitas frequentes de Seo Cadinho, um morador que chegara recentemente à região. Com seu bigode fino, sempre muito bem aparado, vinha me pedir coisas ou dar seus pitecos sobre o que eu devia e não devia fazer face às dificuldades financeiras. Como o homem se dizia entender de tudo – e era lícito que não entendia de quase nada – os amigos com quem me encontrava na venda (misto de boteco e mercearia) do Agenorzinho da Zilda o chamavam de Seo Cadinho. Claro que seu nome real era outro. “Seo Cadinho” porque, segundo suas próprias palavras, sabia cadinho disso, cadinho daquilo.
Seo Cadinho adquirira um pequeno sítio às margens do reservatório da Represa da Água Vermelha, que alimenta uma das cinco sucessivas hidrelétricas do rio Grande, na divisa do Estado de São Paulo com o Triângulo Mineiro. Fazia visitas com frequência à minha propriedade para levar mudas de várias espécies de bananas que cultivamos desde a época do meu pai. A aflição maior dessas suas visitas ao viveiro era quando ele procurava prender minha atenção para pregar sobre sua crença panteísta nos “pudê da natureza”. Tratava-se de uma mescla sincrética de tudo quanto é porcaria proveniente de todos os tipos de religiões existentes no Brasil: catolicismo, igrejas evangélicas, espiritismo kardecista, umbanda, quimbanda, candomblé e o cacete a quatro. Sempre afobado, desejando imensamente dispensá-lo, eu ficava agoniado quando ele começava com aquele mesmo discurso: “Sabe de uma coisa, Seo Menino (nunca me chamava pelo nome), os pudê da natureza é um troço medonho...” Deus do céu, como eu desejava trucida-lo naqueles momentos!
Como sabedor de tudo, Seo Cadinho encheu o saco de muita gente pelo vilarejo e cercanias. Nos meus encontros pontuais com a turma que frequentava a venda de Agernorzinho da Zilda, não havia que não se queixasse de sua impertinência e infinita chatice. Sabia-se pouco sobre seu passado. Teria morado na região de Barretos, onde se casara e tivera um único filho. De vez em quando viajava para lá, a fim de visitar esse filho. Sobre a mulher dizia apenas: “Acabô meu parpite por muié.” Não se sabia ao certo quem deixara quem, mas que se separara da cuja há décadas.
As más línguas da vila diziam que o homem era endinheirado. Tinha valores aplicados e boa aposentadoria. Deveras, pois logo construiu no seu sítio um rancho com boas acomodações, de encher os olhos daqueles caipiras que residiam em modestas casinhas de pau a pique. Esse seu rancho fez fama. A peãozada mais jovem batia para lá todos os sábados e feriados, cada qual levando sua varinha de pesca. O curioso é que ninguém voltava com peixe. Não porque o reservatório fosse menos piscoso naquele trecho. Ocorre que a pescaria era mero pretexto. Lá chegando, Soe Cadinho os esperava com peixes fritos e muitos engradados de cerveja. Cada qual pagava pelas bebidas que tomava, mas os peixes eram por conta da casa. Enquanto tomava umas e outras, a turma se reunia em torno de uma mesa de jatobá para jogar carteado. A dinheiro, claro. Seo Cadinho cuidava, a um só tempo, das apostas, dos peixes fritos e de não faltar cerveja nos copos.
Pelas tantas, dizem as más línguas (sempre elas!), Seo Cadinho oferecia um “cadinho mais” de qualquer coisa aos retardatários. Como nunca tive tempo de frequentar as jogatinas por ele promovidas, não faço ideia do que era esse algo mais. Só sabia que o homem gostava muito de bananas. Bastava eu conseguir uma variedade nova, que aparecia para pedir uma muda. Dizia que era uma fruta abençoada, um “dom da natureza”. Seu bananal, que dava nas margens da represa, era farto e diverso. Dentre as variedades que cedi a ele estavam: São Tomé, nanica anã, ouro, missouri, prata anã, pacovã, marmelo, roxa e velhaca. Além do bananal, tinha um grande criatório de galinhas caipiras. Toda sua produção de bananas e ovos era vendida na venda do Agernorzinho da Zilda, que segundo as más línguas é capaz de vender até a Zilda.
Mas como tudo que é vivo um dia morre, Seo Cadinho foi-se por parada cardíaca. Foi encontrado em decúbito dorsal, justamente em meio ao bananal que tanto prezava. Só então os moradores da vila puderam conhecer seu filho. Um camarada de uns trinta anos, bem apessoado, acompanhado por uma mulher vistosa e dois meninos manhosos vestidos com roupas idênticas. Viera apenas para o enterro? Não só. Embora tenha dito no cartório da cidade, para que quem se prestasse a ouvi-lo, que o pai fora “a vergonha da família”, abocanhou cada centavo do que o homem tinha aplicado na agência bancária local e tratou logo de vender o sítio com tudo que tinha dentro: o rancho, o bananal e a criação de galinhas.
Tão logo Seo Cadinho bateu as botas, Agenorzinho da Zilda, que de besta não tem nada, tratou de adotar sua estratégia de promover carteados movidos a muito peixe frito e cerveja. Para isso comprou até uma chácara próxima da vila, onde não tem por perto a vigilante Zilda para controlar as cervejas e pingas que toma enquanto serve os convidados. A única coisa na qual não imitou do falecido é no tocante ao “cadinho mais” que o outro oferecia de brinde ao final das jogatinas. Se alguém brinca a respeito, Agenorzinho responde ríspido: “Posso oferecer, sim, desde que tu coloque tua mãe no rolo.”
Sobre o que Seo Cadinho foi ou deixou de ser, não me meto a besta de escrever mais nada. Vai que o defunto resolve me atazanar o sono, que não é lá essas coisas, com sua conversação sem termo sobre os “pudê da natureza”. Que ele descanse em paz, com ou sem cadinho a mais!
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