(Edmar Oliveira)
Fui à pré-estreia de “Nise – o Coração da Loucura”. Foi uma
noite emocionante. Ainda lá fora, o encontro com os colegas com quem trabalhei
no velho Engenho de Dentro. Roberto Berliner veio me abraçar depois de tanto
tempo. A ideia do filme começou a ser discutida quando eu ainda era diretor da
instituição. Na sala cheia tive a sorte de abraçar alguns pacientes que
participaram da película. Mais a emoção maior ficou por conta da arte do
Berlinger.
Roberto pegou apenas um recorte da intensa vida da
Psiquiatra Rebelde para mostrar a emoção de lidar da velha mestra. O filme
começa quando Nise volta de longo exílio, após a prisão na ditadura de Vargas,
para terminar na exposição dos artistas do Engenho de Dentro, promovida pelo
crítico de arte Mário Pedrosa (Charles Fricks). Um curto período, mas onde
condensou toda a emoção da velha guerreira para impor seus métodos à antiga e
prepotente psiquiatria (pena que esteja voltando travestida de moderna
neurociência). E ela teve que se socorrer da arte para romper o isolamento que
a cercava.
Berlinger põe na boca de Nise (a excelente Glória Pires),
com toda propriedade, uma frase de Antonin Artaud. Mostrando sua discordância
com os cruentos métodos dos médicos, dirige-se a um deles: “Vocês só têm sobre
eles a força” (Artaud falou “sobre nós”). E quando compara sua técnica (que os
médicos procuravam ridicularizar a terapêutica ocupacional como se fosse uma
“ocupação sem importância”) ela vocifera: “eu tenho os pincéis e vocês o
furador de gelo” (”instrumento” usado na lobotomia). Frase que tanto poderia
ser de Nise ou de Artaud. Uma guerra que ainda hoje continua entre os que
defendem um “serviço substitutivo” contra os trogloditas que ainda nos dias de
hoje defendem o manicômio, o choque elétrico (com o inútil suporte da
anestesia) ou a lobotomia (com o disfarce da psicocirurgia).
O filme parece um documentário quando acompanha os artistas
que seriam revelados pelo Mário Pedrosa: Fernando Diniz (Fabrício Boliveira),
Emígio (Cláudio Jamborandy), Carlos Petuis (Júlio Adrião), Lúcio (Roney Villela),
Otávio (Flávio Bauraqui), Raphael (Bernardo Marinho) e Adelina (Simone Mazzer).
A composição que cada ator dá ao seu personagem é espetacular! Cada um deles é
um documento riquíssimo. Imagino com é difícil compor personagens mortos, onde
se acham apenas algumas pontas de filme antigo, e num deles (Lúcio) só um
retrato três por quatro do prontuário.
Conheci três deles muito bem, apesar de já idosos. O
Fernando do Boliveira é muito perto do Diniz que conheci. O acompanhei de perto
quando lhe demos uma casa de verdade para morar (morou pouco tempo antes de
falecer). O Lúcio eu conheci depois da lobotomia que o tornou uma ameba. Mas eu sabia muito das histórias dos rompantes agressivos do Lúcio e posso dizer para
o Roney que, no filme, chorei porque conhecia o futuro do seu afetivo
personagem depois da lobotomia. E a Adelina que eu conheci era a própria
personagem que a Simone Mazzer criou. Disse a ela que nunca tinha ficado tão
emocionado na criação de um personagem, quanto fiquei na Adelina que a grande
atriz deu vida. Simplesmente um sopro como se a própria Adelina ressuscitasse.
Maravilha!
Nise de Máximo |
Depois do filme um debate com o diretor e atores. Berlinger
apresenta o colaborador Jairo, com quem convivi quando trabalhei no Engenho de
Dentro. Jairo hoje é a representação dos clientes onde Nise buscou os laços
afetivos (que a psiquiatria tradicional garante não existir nos esquizofrênicos).
Jairo escapou do manicômio para frequentar um serviço substitutivo e lá foi
trabalhada sua autonomia e autoestima, baseados nos ensinamentos da mestra.
Jairo pede a palavra apenas para dizer que não poderia ficar para o debate,
pois tinha que pegar sua namorada no trabalho e já estava atrasado. Foi
aplaudido pela plateia e significou o refazer dos laços afetivos que a Nise
buscava nos seus clientes (como ela achava que devíamos chamar os pacientes).
E Jairo representou também a importância do filme de
Berlinger. O filme é muito necessário no momento em que assistimos os
tradicionais doutores psiquiatras apresentados na tela invadirem a realidade
ignorando os ensinamentos de Nise da Silveira.
PS 1 - o autor do texto foi por quase dez anos diretor do Hospital de Engenho de Dentro.
PS 2 - o filme deve entrar em circuito nacional agora que o festival Rio acabou.
Um comentário:
Texto execelente e muito benvindo.
Orgulho dessa prima!
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