domingo, 18 de outubro de 2015

NISE - o coração da loucura


(Edmar Oliveira)

Fui à pré-estreia de “Nise – o Coração da Loucura”. Foi uma noite emocionante. Ainda lá fora, o encontro com os colegas com quem trabalhei no velho Engenho de Dentro. Roberto Berliner veio me abraçar depois de tanto tempo. A ideia do filme começou a ser discutida quando eu ainda era diretor da instituição. Na sala cheia tive a sorte de abraçar alguns pacientes que participaram da película. Mais a emoção maior ficou por conta da arte do Berlinger.

Roberto pegou apenas um recorte da intensa vida da Psiquiatra Rebelde para mostrar a emoção de lidar da velha mestra. O filme começa quando Nise volta de longo exílio, após a prisão na ditadura de Vargas, para terminar na exposição dos artistas do Engenho de Dentro, promovida pelo crítico de arte Mário Pedrosa (Charles Fricks). Um curto período, mas onde condensou toda a emoção da velha guerreira para impor seus métodos à antiga e prepotente psiquiatria (pena que esteja voltando travestida de moderna neurociência). E ela teve que se socorrer da arte para romper o isolamento que a cercava.

Berlinger põe na boca de Nise (a excelente Glória Pires), com toda propriedade, uma frase de Antonin Artaud. Mostrando sua discordância com os cruentos métodos dos médicos, dirige-se a um deles: “Vocês só têm sobre eles a força” (Artaud falou “sobre nós”). E quando compara sua técnica (que os médicos procuravam ridicularizar a terapêutica ocupacional como se fosse uma “ocupação sem importância”) ela vocifera: “eu tenho os pincéis e vocês o furador de gelo” (”instrumento” usado na lobotomia). Frase que tanto poderia ser de Nise ou de Artaud. Uma guerra que ainda hoje continua entre os que defendem um “serviço substitutivo” contra os trogloditas que ainda nos dias de hoje defendem o manicômio, o choque elétrico (com o inútil suporte da anestesia) ou a lobotomia (com o disfarce da psicocirurgia).

O filme parece um documentário quando acompanha os artistas que seriam revelados pelo Mário Pedrosa: Fernando Diniz (Fabrício Boliveira), Emígio (Cláudio Jamborandy), Carlos Petuis (Júlio Adrião), Lúcio (Roney Villela), Otávio (Flávio Bauraqui), Raphael (Bernardo Marinho) e Adelina (Simone Mazzer). A composição que cada ator dá ao seu personagem é espetacular! Cada um deles é um documento riquíssimo. Imagino com é difícil compor personagens mortos, onde se acham apenas algumas pontas de filme antigo, e num deles (Lúcio) só um retrato três por quatro do prontuário.

Conheci três deles muito bem, apesar de já idosos. O Fernando do Boliveira é muito perto do Diniz que conheci. O acompanhei de perto quando lhe demos uma casa de verdade para morar (morou pouco tempo antes de falecer). O Lúcio eu conheci depois da lobotomia que o tornou uma ameba. Mas eu sabia muito das histórias dos rompantes agressivos do Lúcio e posso dizer para o Roney que, no filme, chorei porque conhecia o futuro do seu afetivo personagem depois da lobotomia. E a Adelina que eu conheci era a própria personagem que a Simone Mazzer criou. Disse a ela que nunca tinha ficado tão emocionado na criação de um personagem, quanto fiquei na Adelina que a grande atriz deu vida. Simplesmente um sopro como se a própria Adelina ressuscitasse. Maravilha! 
   
Nise de Máximo

Depois do filme um debate com o diretor e atores. Berlinger apresenta o colaborador Jairo, com quem convivi quando trabalhei no Engenho de Dentro. Jairo hoje é a representação dos clientes onde Nise buscou os laços afetivos (que a psiquiatria tradicional garante não existir nos esquizofrênicos). Jairo escapou do manicômio para frequentar um serviço substitutivo e lá foi trabalhada sua autonomia e autoestima, baseados nos ensinamentos da mestra. Jairo pede a palavra apenas para dizer que não poderia ficar para o debate, pois tinha que pegar sua namorada no trabalho e já estava atrasado. Foi aplaudido pela plateia e significou o refazer dos laços afetivos que a Nise buscava nos seus clientes (como ela achava que devíamos chamar os pacientes).

E Jairo representou também a importância do filme de Berlinger. O filme é muito necessário no momento em que assistimos os tradicionais doutores psiquiatras apresentados na tela invadirem a realidade ignorando os ensinamentos de Nise da Silveira.  


PS 1 - o autor do texto foi por quase dez anos diretor do Hospital de Engenho de Dentro.

PS 2 - o filme deve entrar em circuito nacional agora que o festival Rio acabou.   
      


Um comentário:

Patricia Mellodi disse...

Texto execelente e muito benvindo.
Orgulho dessa prima!