(Edmar Oliveira)
Uma geração vem perdendo Teresina. Cidade nova, nascida no
largo do Amparo, nas margens do Parnaíba, cresceu entre dois rios, dividida
pela Igreja de São Benedito, que se debruçava do Alto do Jurubeba sobre a rua
Bela: ao sul, suas ruas corriam até a Tabuleta, bairro onde a placa de entrada
dizia que a cidade tinha começado. Ao norte era limitada pelo encontro dos
rios. O oeste já era Flores, no Maranhão. Ao leste, as coroas do rio Poty. O
centro urbano era pequeno, contido pela Avenida Circular – hoje Miguel Rosa –
em ruas retas, num desenho quadriculado, cada quarteirão com exatos cem metros.
E havia praças e espaços de congraçamentos urbanos. Lembro-me de quando minha
mãe teve que se desfazer de nossa casa na Campos Sales e fomos morar tão perto,
mas depois da Miguel Rosa, ela reclamou: “Saímos do centro para o subúrbio”.
Para o sul a cidade cresceu. Quando morei no Parque Piauí,
minha mãe dizia que eu me mudara para Barro Duro – a atual cidade de Demerval
Lobão. Tinha uma tia que morava depois da Vermelha, que minha mãe, com sua
implicância, dizia já ser em Nazária. Também cresceu para o lado do Maranhão,
inchando a cidade de Timon – a antiga Flores. Mas para o leste, depois do Poty,
tinha apenas as chácaras de alguns ricaços para passar fim de semana. O urbano
e chic era contido pela Miguel Rosa. E a minha geração cresceu entre as Praças
Rio Branco, Pedro II, da Liberdade, do Liceu, do Amparo – no Mercado Velho. No Clube dos Diários, nos
cinemas, na Prainha, nas coroas do Rio Parnaíba, na Ponte Metálica, nos cabarés
da Paissandu – antiga Rua dos Pequizeiros, na Palha de Arroz, na Baixa da Égua,
na Estação. Ou na Maria Tijubina, no Mafuá.
Depois que vim embora, a cidade, como se por encanto, saltou
para o outro lado do Poty – na zona Leste. Fizeram até uma nova ponte, toda
iluminada, com suas estaias feito uma grande asa que te leva a um mirante, para
saudar e sacramentar a mudança.
Sei, as cidades crescem, muda-se o centro de vida que
existem nelas, mas Teresina abandonou a cidade inaugural. Cada vez que volto
descubro que a minha geração vem perdendo a Teresina que nos criou. Parece uma
cidade fantasma, em que velhas construções – que nos serviam de guias – foram
postas abaixo para virar estacionamento. À noite a cidade morre. Qualquer sinal
de vida só depois da ponte nova.
E quem mais me chamou a atenção para essa mudança
assustadora, foi o poeta Paulo Tabatinga. Acompanhava sua
poesia em versos e fotografias que testemunhavam a fagocitose da cidade velha
pelos altos edifícios da nova cidade. Atavicamente ligado aos fantasmas da
cidade velha, o poeta percebe que “a
cidade prostituída / devora os cabarés antigos”.
Pois esses versos, ilustrados por uma fotografia que também
é poesia, nos chegam neste “A Cidade Sitiada”. Paulo se
recusa a sair dos escombros na tentativa de reconstituir o passado: “A casa da minha vó / já teve muita vida /
hoje meu olhar / percorre corredores sem fim”. Ou enxerga no som de antigos discos de vinil,
que teimam em tocar na velha cidade, um som que traduz o que sente seu coração:
O vinil é a volta / da rotação sincera”.
O poeta empreende um luta, armado como um cavaleiro
medieval, contra as facilidades do progresso tecnológico para a preservação da
memória: “Usurpam-nos o espaço real / e
nos vendem a prisão virtual / dentro de um cartão de memória”. Sua luta é
para a reconstrução do espaço em que foi gestada a nossa memória. Ele sabe bem
que uma cidade sem passado não tem futuro. E ainda nos ameaça com a doença da
modernidade, que os médicos sabem tão bem ser uma consequência da perda dos
afetos também: “A família que não recorda
/ se encontra no Alzheimer”.
Enfim, encontro na poesia de Paulo um libelo contra a
destruição da memória de uma geração. Ele fotograva e escreve para que Teresina
não desapareça na lembrança, quanto temia o Lucídio Freitas quando veio embora
e não pôde voltar:
Teresina apagou-se na distância,
Ficou longe de mim, adormecida,
Guardando a alma de sol da minha infância
E o minuto melhor da minha vida.
(LF)
Diferente de Lucídio, mas com a mesma sensação poética do
antigo conterrâneo, Paulo vê a Teresina sumir da nossa memória, quando ainda
vivemos nela. Ela se apaga no mesmo tempo em que vivemos e isso, talvez, seja
mais doloroso do que a lembrança de quem não pôde mais voltar, sabendo que
morria e a cidade ficava. Paulo nos mostra que Teresina morre ao mesmo tempo em
que morremos. E isso ameaça a nossa existência na lembrança dos novos
habitantes da cidade. Ela e nós seremos apenas uma fotografia que pode até ter
existido, mas ninguém lembra: “Como dói
uma fotografia / na distância amarelada do tempo”. A esta cidade sitiada,
nossa memória está prisioneira.
Um comentário:
O Paulo Tabatinga, antes, com seus filmes, que agora estão no You Tube, e com suas fotografias, revelou esse "abandono da Teresina inaugural", espaço hoje que é o centro histórico, aquela cidade velha que está Sitiada pelas mudanças devastadoras e com as opções variadas para os jovens de hoje (pasmem, mas há jovens hoje aqui em Teresina que não conhece o centro da cidade!). A poesia dele veio para completar as imagens, mesmo que estas valham mil das palavras daquela...
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