HOJE SOU EU QUE ESTOU EM CRISE
Hoje tive uma manhã tranquila na Clínica da Família. Só dois chamados para matriciamento em Saúde Mental. Os pacientes que sempre me procuram a toda hora não estavam hoje. Achei que, como estou me despedindo, os pacientes já estão se acostumando com a minha ausência. Estranho. Sai para o almoço até mais cedo do que de costume.
Não consegui voltar. Não tinha percebido que desde a manhã algo estava no ar prenunciando uma invasão à favela. Já tinha percebido esse estranhamento em situações anteriores. Dessa vez não. Voltei do almoço ouvindo uma música clássica não percebendo o que já se anunciava desde cedo. Na Avenida dos Democráticos, quase em frente à Cidade da Polícia, alguns policiais apontavam armas para uma viela da comunidade conhecida como Conjunto Habitacional Provisório II. Num átimo fiquei pensado nos nomes como sempre faço: democráticos, assim ao poder de pistolas e fuzis? Provisório que já dura uma eternidade e vai até mudar de nome pela Clínica para que o provisório se perpetue. Eu, que conheço bem a geografia daquele lugar, sempre soube que um tiro contra a comunidade no meio e no fim da viela não é bala perdida. Ela vai achar alguém. Ouvi alguns estampidos. Os policiais atiraram. Parecia que não só eles. Sai de um estado de torpor quando carros à minha frente começaram a dar meia volta. Automaticamente fiz o retorno, inclusive já orientado por policiais.
Tentei contornar pela Avenida Leopoldo Bulhões que fica em frente a Escola de Saúde Pública da FIOCRUZ, mas compreendi porque ela é também conhecida como Faixa de Gaza. Senti que tinha entrado numa zona de confronto aberto. Outra vez fiz um retorno na contramão em companhia de ônibus, caminhões de entrega e muitos carros que deixaram a via engarrafada. Mas tínhamos que sair de onde vinha uma fumaça. Se protesto ou confronto era uma confusão que não dava para querer saber.
Recebo mensagens de amigos, pelo celular, para não voltar para a Clínica. Segundo informaram a UPP mandou fechar a Clínica. Como fazem os traficantes, mandam fechar o comércio e as instituições públicas para que haja o confronto. Estou em casa, seguro, escrevendo essa nota.
Soube da morte de um menino de treze anos perto do campo de futebol. Ele não pode recuar como fiz. Ele mora onde morreu, na porta de casa. Tive acesso a um vídeo que mostra a população revoltada com a polícia e no final o corpo do menino. Vejo o vídeo várias vezes, pois inúmeras vezes andei naquele espaço conversando com senhoras na porta de casa, homens alegres na birosca, meninos soltando pipas.
Reconheço alguns barracos onde já entrei para atender meus pacientes em visita domiciliar. Reconheci a varanda onde atendi alguém há poucos dias. Não sei se já entrei na casa do menino. Mas descubro horrorizado que logo verei outra mãe em situação de desespero. Desespero por uma situação sem saída e humilhante. Situação de impotência frente a políticas de estado que abalam a saúde mental de uma população marginalizada. Algo deve ser feito, pois está tudo errado. A situação de “enxugar o gelo” de uma dor sem fim não é sustentável.
É preciso que as ações de saúde sejam muito além do saber médico. É necessário que enfrentemos a dor da humilhação, que as situações sem saídas possam falar do sentimento que é ser morador de favela, é preciso parar com essa situação idiota da guerra às drogas, é necessário fazer destas pessoas cidadãos dessa cidade, é preciso fazer os direitos humanos universais valerem também na favela.
Só assim começaremos a restabelecer a saúde mental destas pessoas sofridas. É inócuo receitar antidepressivos!
(EDMAR OLIVEIRA, postado no facebook no dia do acontecimento, 8 de setembro). O vídeo abaixo suscitou o desabafo:
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