SONO
Haruki
Murakami
trad.
Lica Hashimoto
115
pgs
Editora
Alfaguara
Luíz
Horácio.
Florianópolis-SC
Quem lê Murakami aprecia o
absurdo. Mas o realismo também oferece matéria prima, inclusive o realismo
doméstico .
Sono é um dos 16 contos do livro L'éléphant s'évapore,
de Haruki Murakami. Também traduzida do japonês, esta por Corinne Atlan. Citei
a edição francesa por ser a que tenho e li.
Não sei se o livro foi traduzido
para o nosso português. Para o de Portugal, sim. O elefante evapora-se.
São contos escritos no final dos anos 80 e início dos anos 90,
todos com a inconfundível grife Murakami: o absurdo integrado a rotina de seres
comuns, personagens da classe média japonesa presos a banalidades de uma vida
cotidiana bastante previsível.
Sono retrata a agonia de
uma dona de casa que não consegue dormir.Não dorme e tampouco sente necessidade
de adentrar a seara de Morpheu. Não há resquícios das noites mal dormidas em
suas atividades diárias. Está sempre disposta, realiza todas tarefas de dona de
casa e ainda encontra disposição para nadar, fazer compras e ler romances
russos. A insônia é sua e faz questão de não dividi-la com ninguém, seu marido
e seu filho são meros coadjuvantes. Na narrativa não passam de personagens
secundários, mas na vida da dona de casa, não se destaca ninguém no papel de
protagonista. Filho acorda, toma café, vai à escola, retorna. O marido toma
café, sai com o filho que deixa na escola e vai para se consultório
odontológico, na ausência do primeiro paciente da tarde tenta uma relação
sexual com a mulher insone. Tenta...isso saira de sua rotina e ela segue o
roteiro.
A impressão que se tem é de lermos o relato da empregada dos
Jetsons, um robô bastante humano. Nada estarrecedor nessa comparação. A dona de
casa age feito robô, no automático.
Atenção fiel leitor de Murakami, muita atenção, ao começar a leitura de Sono tem-se a impressão de uma narrativa que pouco
faz lembrar esse autor. E se analisarmos Sono dentro do contexto de O elefante se evapora perceberemos que ele destoa e muito dos
outros dezesseis contos . Dezessete é um número cabalístico para Murakami . É o décimo sétimo dia em que não consigo dormir.
Sono, editado no Brasil em edição luxuosa pela
Alfaguara, traduzido do japonês por Lica Hashimoto, destoa do conjunto porque
os aspectos do estranhamento, do fantástico, do absurdo tão presentes nos
demais não merecem o destaque nesse conto. Destacado daquele contexto e com um
olhar atento o leitor perceberá todo o imenso talento de Murakami embora uma
história banal.Extremamente banal.
Sono revela o cotidiano de uma
vida simples, uma dona de casa, mãe de um garoto que de uma hora para outra se
percebe vítima de insônia. Começa a narrar sua história no décimo sétimo dia
sem pregar o olho. A dona de casa jamais se vitimiza ao longo das páginas.
Sejam as narradas por ela e as que costuma ler na ausência do sono. Nem mesmo a
seu marido, que deita e dorme, ela conta suas agruras noturnas.E essa mulher
forte, sim precisa ser no mínimo forte para não dormir e levar a vida dentro da
normalidade, conduz sua vida sem o menor transtorno. Sequer um soninho
reparador lhe faz falta. Agora percebo que a ausência da estranheza, do absurdo
e até mesmo surrealismo, constantes em Murakami, estejam exatamente aqui na
solidez dessa dona de casa.Perdoe “murakamiano” leitor.
É isso, exatamente isso, a medida que as noites de insônia se
multiplicam, a força da mulher se renova. E ela não gasta suas horas noturnas
como costuma fazer a maioria dos insones: tentando dormir. Conformada com sua
impossibilidade de encontrar o sono, ela
se acomoda sobre o sofá na companhia de um copo de conhaque e um exemplar de
Anna Karenina.
Ao ler a obra de Tolstói ela reencontra antigas emoções que a
vida de casada empoeirou. Mas permanecem vivas num canto escuro da memória.
Como o hábito de comer chocolate, esquecido após o casamento
pois o marido não gostava de doces. Chocolate, eis a madeleine da anônima
personagem central de Sono.
Eu adorava ler livros
comendo alguma coisa. Por falar nisso, depois que me casei praticamente deixei
de comer chocolate. Talvez pelo fato de meu marido não gostar de doces.”
A leitura de Ana Karenina desperta as emoções da insone e
praticamente invisível dona de casa. O que importa ao seu marido e filho é o
que ela faz e não o que ela representa, o que ela almeja, o que talvez
necessite.Uma dona de casa a quem é destinado o fazer sem espaço e tempo para o
sentir. E a obra de Tolstói permite um
mundo à parte ao mesmo tempo que faz a função de espelho, frustrações e
anulações vivem nos espelhos, estes porém não permitem perspectivas.
Justo esse romance que começa com a famosa frase “Todas as
famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”
E a insônia traz consigo pitadas de prazer, seja pela comida,
seja pelas lembranças.
“Vesti um cardigã, peguei o elevador e desci. Fui até a doceria
perto de casa e comprei dois tabletes de chocolate ao leite, daqueles que
parecem bem doces. Assim que saí da loja, abri um deles e comi um pedaço da
barra no trajeto de volta para casa. O gosto do chocolate se espalhou pela
boca. No mesmo instante senti que todo o meu corpo, dos pés à cabeça, sugava
diretamente aquela doçura.”
A ausência de sono permite a presença da mulher jovem, a mulher
que sonhava antes do casamento e no momento nem mesmo dormir lhe é permitido.
Um pesadelo marca o início de sua longa vigília. Pesadelo que retornará. Vale a
pena adentrar os meandros da frustração, do insólito, do banal e ao mesmo tempo
do estranho que a leitura de Sono oferece.
E a mulher passa a viver uma dupla realidade. Ambas bastante
limitadoras.
Sono é um conto surpreendente,
apesar de relevar uma rotina das mais patéticas, sutil, digno representante do
universo de Murakami. Mas atenção, percebe-se aqui a sutileza caracteristica
desse autor porém relegada a segundo plano devido a exuberância do fantástico e
do estranhamento. Seu título mais recente publicado no Brasil, O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de
peregrinação, apresenta essa sutileza num primeiro plano e,
coincidentemente, aborda o universo e a rotina de pessoas comuns.
Sono consegue ser delicado,
detalhes devem ser seguidos, eles formam a personagem, consciente e
inconsciente, realidade, sonho, morte, se misturam e se confundem com a
narradora, pintando, com cores tristes, o quadro de sua vida.
TRECHO
Estou com trinta anos. Aos trinta descobre-se que isso não é o
fim do mundo.Não digo que é agradável envelhecer, mas há de se convir que
certas coisas tornam-se mais fáceis com a idade. Tudo é uma questão de ponto de
vista. Uma coisa é certa: se uma mulher
de trinta anos realmente ama o seu corpo e deseja mantê-lo em forma, precisa se
empenhar muito.Isso eu aprendi com a minha mãe. Antigamente, ela era uma mulher
bonita e esbelta, mas infelizmente, hoje ela deixou de sê-lo. Eu não quero
ficar como ela.
Dependendo do dia, eu faço algo diferente depois de nadar. Às
vezes, vou até o shopping da estação e fico à toa olhando as vitrines, ou então
volto para casa, sento no sofá, leio um livro escutando uma rádio FM e, por
fim, acabo cochilando. Pouco depois, meu filho volta da escola.
AUTOR
Haruki Murakami nasceu em Kyoto, no Japão, em janeiro de 1949. É
considerado um dos autores mais importantes da atual literatura japonesa. Sua
obra foi traduzida para 42 idiomas e recebeu importantes prêmios, como o Yomiuri e o Franz Kafka.
TRADUTORA
Lica Hashimoto é mestre em Língua, Literatura e Cultura
Japonesa, Doutora em Literatura Brasileira.Atualmente é Docente do Departamento
de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo
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