domingo, 12 de julho de 2015

SONO


SONO
Haruki Murakami
trad. Lica Hashimoto
115 pgs
Editora Alfaguara
Luíz Horácio.
Florianópolis-SC

Quem lê Murakami aprecia o absurdo. Mas o realismo também oferece matéria prima, inclusive o realismo doméstico .
Sono é  um dos 16 contos do livro L'éléphant s'évapore, de Haruki Murakami. Também traduzida do japonês, esta por Corinne Atlan. Citei a edição francesa por ser a que tenho e li.  Não sei se o livro  foi traduzido para o nosso português. Para o de Portugal, sim.  O elefante evapora-se.
São contos escritos no final dos anos 80 e início dos anos 90, todos com a inconfundível grife Murakami: o absurdo integrado a rotina de seres comuns, personagens da classe média japonesa presos a banalidades de uma vida cotidiana bastante previsível.
Sono retrata a agonia de uma dona de casa que não consegue dormir.Não dorme e tampouco sente necessidade de adentrar a seara de Morpheu. Não há resquícios das noites mal dormidas em suas atividades diárias. Está sempre disposta, realiza todas tarefas de dona de casa e ainda encontra disposição para nadar, fazer compras e ler romances russos. A insônia é sua e faz questão de não dividi-la com ninguém, seu marido e seu filho são meros coadjuvantes. Na narrativa não passam de personagens secundários, mas na vida da dona de casa, não se destaca ninguém no papel de protagonista. Filho acorda, toma café, vai à escola, retorna. O marido toma café, sai com o filho que deixa na escola e vai para se consultório odontológico, na ausência do primeiro paciente da tarde tenta uma relação sexual com a mulher insone. Tenta...isso saira de sua rotina e ela segue o roteiro.
A impressão que se tem é de lermos o relato da empregada dos Jetsons, um robô bastante humano. Nada estarrecedor nessa comparação. A dona de casa  age feito robô, no automático.
Atenção fiel leitor de Murakami, muita atenção,  ao começar a leitura de Sono  tem-se a impressão de uma narrativa que pouco faz lembrar esse autor. E se analisarmos Sono dentro do contexto de O elefante se evapora  perceberemos que ele destoa e muito dos outros dezesseis contos . Dezessete é um número cabalístico para Murakami . É o décimo sétimo dia  em que não consigo dormir.
Sono,  editado no Brasil em edição luxuosa pela Alfaguara, traduzido do japonês por Lica Hashimoto, destoa do conjunto porque os aspectos do estranhamento, do fantástico, do absurdo tão presentes nos demais não merecem o destaque nesse conto. Destacado daquele contexto e com um olhar atento o leitor perceberá todo o imenso talento de Murakami embora uma história banal.Extremamente banal.
Sono revela o cotidiano de uma vida simples, uma dona de casa, mãe de um garoto que de uma hora para outra se percebe vítima de insônia. Começa a narrar sua história no décimo sétimo dia sem pregar o olho. A dona de casa jamais se vitimiza ao longo das páginas. Sejam as narradas por ela e as que costuma ler na ausência do sono. Nem mesmo a seu marido, que deita e dorme, ela conta suas agruras noturnas.E essa mulher forte, sim precisa ser no mínimo forte para não dormir e levar a vida dentro da normalidade, conduz sua vida sem o menor transtorno. Sequer um soninho reparador lhe faz falta. Agora percebo que a ausência da estranheza, do absurdo e até mesmo surrealismo, constantes em Murakami, estejam exatamente aqui na solidez dessa dona de casa.Perdoe “murakamiano” leitor.
É isso, exatamente isso, a medida que as noites de insônia se multiplicam, a força da mulher se renova. E ela não gasta suas horas noturnas como costuma fazer a maioria dos insones: tentando dormir. Conformada com sua impossibilidade  de encontrar o sono, ela se acomoda sobre o sofá na companhia de um copo de conhaque e um exemplar de Anna Karenina.
Ao ler a obra de Tolstói ela reencontra antigas emoções que a vida de casada empoeirou. Mas permanecem vivas num canto escuro da memória.
Como o hábito de comer chocolate, esquecido após o casamento pois o marido não gostava de doces. Chocolate, eis a madeleine da anônima personagem central de Sono.
Eu adorava ler livros comendo alguma coisa. Por falar nisso, depois que me casei praticamente deixei de comer chocolate. Talvez pelo fato de meu marido não gostar de doces.”
A leitura de Ana Karenina desperta as emoções da insone e praticamente invisível dona de casa. O que importa ao seu marido e filho é o que ela faz e não o que ela representa, o que ela almeja, o que talvez necessite.Uma dona de casa a quem é destinado o fazer sem espaço e tempo para o sentir.  E a obra de Tolstói permite um mundo à parte ao mesmo tempo que faz a função de espelho, frustrações e anulações vivem nos espelhos, estes porém não permitem perspectivas.
Justo esse romance que começa com a famosa frase “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”
E a insônia traz consigo pitadas de prazer, seja pela comida, seja pelas lembranças.
“Vesti um cardigã, peguei o elevador e desci. Fui até a doceria perto de casa e comprei dois tabletes de chocolate ao leite, daqueles que parecem bem doces. Assim que saí da loja, abri um deles e comi um pedaço da barra no trajeto de volta para casa. O gosto do chocolate se espalhou pela boca. No mesmo instante senti que todo o meu corpo, dos pés à cabeça, sugava diretamente aquela doçura.”
A ausência de sono permite a presença da mulher jovem, a mulher que sonhava antes do casamento e no momento nem mesmo dormir lhe é permitido. Um pesadelo marca o início de sua longa vigília. Pesadelo que retornará. Vale a pena adentrar os meandros da frustração, do insólito, do banal e ao mesmo tempo do estranho que a leitura de Sono oferece.
 E a mulher passa a viver  uma dupla realidade. Ambas bastante limitadoras.
Sono é um conto surpreendente, apesar de relevar uma rotina das mais patéticas, sutil, digno representante do universo de Murakami. Mas atenção, percebe-se aqui a sutileza caracteristica desse autor porém relegada a segundo plano devido a exuberância do fantástico e do estranhamento. Seu título mais recente publicado no Brasil, O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação, apresenta essa sutileza num primeiro plano e, coincidentemente, aborda o universo e a rotina de pessoas comuns.
Sono consegue ser delicado, detalhes devem ser seguidos, eles formam a personagem, consciente e inconsciente, realidade, sonho, morte, se misturam e se confundem com a narradora, pintando, com cores tristes, o quadro de sua vida.


TRECHO 
Estou com trinta anos. Aos trinta descobre-se que isso não é o fim do mundo.Não digo que é agradável envelhecer, mas há de se convir que certas coisas tornam-se mais fáceis com a idade. Tudo é uma questão de ponto de vista. Uma coisa é certa: se uma  mulher de trinta anos realmente ama o seu corpo e deseja mantê-lo em forma, precisa se empenhar muito.Isso eu aprendi com a minha mãe. Antigamente, ela era uma mulher bonita e esbelta, mas infelizmente, hoje ela deixou de sê-lo. Eu não quero ficar como ela.
Dependendo do dia, eu faço algo diferente depois de nadar. Às vezes, vou até o shopping da estação e fico à toa olhando as vitrines, ou então volto para casa, sento no sofá, leio um livro escutando uma rádio FM e, por fim, acabo cochilando. Pouco depois, meu filho volta da escola.


AUTOR 
Haruki Murakami nasceu em Kyoto, no Japão, em janeiro de 1949. É considerado um dos autores mais importantes da atual literatura japonesa. Sua obra foi traduzida para 42 idiomas e recebeu importantes  prêmios, como o Yomiuri e o Franz Kafka.

TRADUTORA
Lica Hashimoto é mestre em Língua, Literatura e Cultura Japonesa, Doutora em Literatura Brasileira.Atualmente é Docente do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo


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