domingo, 18 de novembro de 2012

do que é (de)feito




Não conheço pessoalmente o Aderval Borges. Fomos apresentados no espaço virtual da internet por nosso amigo comum Durvalino Couto (poeta dos bons e aqui já festejado). Dervas (como na intimidade, mesmo a distância, tratamos o Aderval) escreveu este belo poema com as devidas explicações a seguir. Publico-o por merecimento. E gastem um pouco do seu tempo para (não hesito em dizer) esta obra-prima. (Edmar)
 
 O e-mail de Dervas:  
Cabras,
Tenho minhas fixações de caipira iconoclasta. A maioria não diz coisa com coisa. Identificações poéticas (êta adjetivozinho gasto e fartamente picareteado!) Dentre minhas fixações da esfera mais ou menos marxista estão Rosa de Luxemburgo e Walter Benjamin. E dentre as fixações de outras esferas está Marcel Duchamp. Há tempo trabalho com um poema a partir de um tema (também fixação) – rosas defeituosas – tendo como sustentação Rosa de Luxemburgo e uma das várias personas de Duchamp, a cafetina rrose sélavy (grafada assim mesmo, com minúsculas). Figuras opostas: a primeira rigorosamente não vendável e a segunda absolutamente vendável (só o personagem, porque Duchamp nunca se vendeu e sequer vendeu qualquer de suas obras em vida). Lá pelo meio do poema há esculhambações à esquerda (antiga e atual). Esculhambo a dita cuja porque dela vim – me sinto parte – e não conheço nada da direita para comentar, muito menos conheço qualquer direitista; meus amigos (e inimigos) são todos de esquerda. Segue a porra do poema no arquivo anexado. Se tiverem saco, leiam; se não, baleiem, lógico. Evidente que um poema não é apenas pra expor temas. Há toda cadência, ritmo, linguagem, figuras de linguagem, o caralho a quatro.
abç
 
 
do que é (de)feito
 
que perfume pode ter uma rosa
propensa ao despedaçamento
cuja haste rija e espinhosa
nega tato aos pretendentes?
que cor pode ter uma flor
que aira onde paira a indiferença
busca firmeza num solo sem essência
consolo na falta de complacência?
que futuro pode ter uma rosa
que acolhe as glosas dos amantes
mas só se deixa ver por inteira
durante o despedaçamento?
dela não restará pétala sobre pétala
até a memória estará fadada
a se juntar ao acúmulo de restos
para repasto da História
isso é motivo para rezas, Renze?
acorde, cabeça de ovo
pare de fingir que está do lado do povo
direita, volver!
esquerda, vou ver...
por que depois de consumado o ato
opostos brindaram lado a lado
com devotado entusiasmo
enfim alguém achara a solução...
ela fora sempre tão equivocada...
um caso irrecuperável...
de péssima reputação...
muito cedo deixou o norte
para vir de encontro à morte
e cair nos jogos daquele Joguices
para o partido, revisionista
para o sionismo, amante dos pássaros
aves alçam arribação
quando na claridão transluz seu voo
em geométrica ocupação
jamais batem as asas estabanadas
no rumo da escuridão
gostava de Marx pelas dúvidas
não pelas convicções
o materialismo era sua religião
ah, o merecido fim tiveram
ela e aquele Liebknetch!
ninguém acreditou, ninguém
que aquela flor carmim
prestes a pôr um fim aos impasses pelo suicídio
pudesse ter se dado
com tanto afã ao comunismo
de certa forma evitou que o movimento
(pelo menos naquele momento)
ruísse qual chuva de fogo
e devorasse os seus em fês fervente
algozes e camaradas
provaram do próprio opróbio
pois da mesma forma constataram
o quanto fora imprópria
a superioridade imposta sobre ela
o ideal só é puro ao chegar
banha-se entre rebanhos vigiados
esteja nas testas vibrantes dos obstinados
ou nas sobrancelhas espessas dos mais simples
o ideal estimula no coletivo
a resolutividade que falta ao indivíduo
de modo que a existência de uma rosa
pequena e frágil como aquela
jamais se expanda exasperada
para além das grades
que a mantém secreta no jardim
o ideal é a decomposição do momento
no instante do encontro
um degrau da loucura que se doa
em sacrifício por nada
não requer compreensão
a nada se fia e às trevas se entrelaça
como murmúrio alcoólico
num botequim em tumulto
direita, volver!
esquerda, vou ver...
por que viradas as páginas da História
lados que um dia foram opostos
e estiveram a postos
dispostos para a batalha
possam agora erguer as taças
em mútuo desagravo
outrora inimigos, agora amigos
será que no fundo foram sempre assim:
igualmente imundos!
a honradez cedeu lugar ao apogeu burguês
sem paixões e compromissos
mãos que um dia se armaram pela revolução
agora trocam afagos com o inimigo
pela mesma falta de motivos
em meio à ausência de disputas
emerge uma rosa puta
diversa em tudo daquela
esta até no gênero se expressa
sem pudores extremos
não conjuga ideias nos trilhos
mas é exímia nos trocadilhos
pelo sim e pelo não
na cama se oferece como poucas
numa profusão de poses
do alto dos cílios postiços
serve-se com variados artifícios
até o útero extirpou
a fim de manter eretas as tetas
e tê-las sempre tesas
para entreter os amigos
despida de qualquer postura
doa-se no auge da orgia
quando então se extasia:
“se lá vi
nada disso é o que procuro
e nada disso houve”
para essa flor de mundano viço
o que menos importa são compromissos
ideologias não têm utilidade
são artigos de antiguidade
cujos métodos são impostos
pela falta de princípios
por uma Macedônia que jamais se fez
segue em busca de Fernandez
às instâncias militantes
propõe uma fórmula:
troquem o fabulário da luta de classes
pela roleta da esbórnia
para ela no marxismo nada é belo
sua estética é uma velha caquética
incapaz de oferecer o gosto
com sensação de gozo
alheia às falácias dialéticas
essa rosa sem rosário
cerra-se num outro modo de ser
decerto que disseminará pragas
pois só assim se propaga
o direito como sentido de recusa
enquanto causas e coisas se exaurem
segue numa espiral de pétalas
que termina por onde tudo recomeça
embora com o perfume infame das ideias
Dianas anêmicas ainda se banhem
e Acteães afetados se locupletem
sempre haverá rosas de outros tipos
umas dão lugar ao que se deixa
outras a lugares que se penetra
umas se entregam apaixonadas
outras por álgebra hermética
há rosas que nem se abrem
e rosas de aceitação confessa
para manter a essência
todas, abertas ou em botão
estão condenadas à desaparição
pois só assim conseguem antever
o outro lado da nossa ausência


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