Edmar Oliveira
Ainda menino
pisava as pedras do riacho da Água Fria, catando umas pedrinhas miudinhas e
roliças para fazer munição da minha baladeira. O estilingue, o bodoque de
outras terras, chamávamos baladeira, uma palavra de beleza plástica
inesquecível. Na tira de couro em que a bala de pedra era embalada, duas tiras
de borracha (muito boas as de pneu de bicicleta) amarradas do furo do couro ao
cabo aforquilhado de goiabeira ou araçá, faziam a tração necessária para
impulsionar a pedra. Na mira de um olho fechado e o outro passando por dentro
do cabo se acertavam os passarinhos e as labigós, lagarto que abanava a cabeça
em desaprovação às nossas travessuras e corria a se esconder por entre as
pedras da caatinga, metamorfoseando-se no cinza da falta das cores.
Mas tinha um
porém para os ruim na mira da baladeira: só engolindo um coração de beija-flor
se ficava “guabes”, que designava “o bom”, fosse de tiro ou fosse “guabes” em
quaisquer outras proezas. Para ficar “guabes” tinha-se que engolir o coração
miúdo do beija-flor. Mas como acertar um beija-flor, no seu parado no ar,
deslocando-se em grande velocidade antes de chegar a pedra? Inda mais se o
“cabra” ainda não fosse “guabes”? Era preciso, assim, que um amigo, já
“guabes”, lhe servisse o coração encantado, ainda vivo, para que ingerido
fizesse do candidato a atirador um “guabes”. Aconteceu como nas maldades de
crianças que não tem limite: o pequeno coração ensangüentado e ainda em
tremores na palma da mão teria o destino poético da transubstanciação, da qual
só conhecia o corpo de Deus na comunhão da hóstia sagrada. Não sabia ainda que
a antropofagia de nossos antepassados ali se materializava adquirindo as
características do guerreiro morto. Pequeno ritual arquétipo.
Não tive a
coragem de consumar o ato. Acovardei-me e fiquei ruim de tiro. Nunca mais matei
um passarinho. Mas o meu coração de beija-flor me fez sentir o aroma das flores
e a seiva da vida como se eu fosse um deles a entender o mundo....
3 comentários:
levíssimo! adorei!
Um bodoque acertou-me em cheio o coração...
Mas Fênix que sou,
retornei das cinzas
transbordada em beija-flor...
Cara, beija-flor e qualquer outros animal e\ou insetos são sagrados... nem pensar em associar com estilingue, bodoque, baladeira ou outro instrumento qualquer. Quando crianças, somos cruéis....
rosário pinto
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