domingo, 27 de maio de 2012

Meu coração de beija-flor


Edmar Oliveira

            Ainda menino pisava as pedras do riacho da Água Fria, catando umas pedrinhas miudinhas e roliças para fazer munição da minha baladeira. O estilingue, o bodoque de outras terras, chamávamos baladeira, uma palavra de beleza plástica inesquecível. Na tira de couro em que a bala de pedra era embalada, duas tiras de borracha (muito boas as de pneu de bicicleta) amarradas do furo do couro ao cabo aforquilhado de goiabeira ou araçá, faziam a tração necessária para impulsionar a pedra. Na mira de um olho fechado e o outro passando por dentro do cabo se acertavam os passarinhos e as labigós, lagarto que abanava a cabeça em desaprovação às nossas travessuras e corria a se esconder por entre as pedras da caatinga, metamorfoseando-se no cinza da falta das cores.

            Mas tinha um porém para os ruim na mira da baladeira: só engolindo um coração de beija-flor se ficava “guabes”, que designava “o bom”, fosse de tiro ou fosse “guabes” em quaisquer outras proezas. Para ficar “guabes” tinha-se que engolir o coração miúdo do beija-flor. Mas como acertar um beija-flor, no seu parado no ar, deslocando-se em grande velocidade antes de chegar a pedra? Inda mais se o “cabra” ainda não fosse “guabes”? Era preciso, assim, que um amigo, já “guabes”, lhe servisse o coração encantado, ainda vivo, para que ingerido fizesse do candidato a atirador um “guabes”. Aconteceu como nas maldades de crianças que não tem limite: o pequeno coração ensangüentado e ainda em tremores na palma da mão teria o destino poético da transubstanciação, da qual só conhecia o corpo de Deus na comunhão da hóstia sagrada. Não sabia ainda que a antropofagia de nossos antepassados ali se materializava adquirindo as características do guerreiro morto. Pequeno ritual arquétipo.

            Não tive a coragem de consumar o ato. Acovardei-me e fiquei ruim de tiro. Nunca mais matei um passarinho. Mas o meu coração de beija-flor me fez sentir o aroma das flores e a seiva da vida como se eu fosse um deles a entender o mundo....    

3 comentários:

Administração disse...

levíssimo! adorei!

Ana Cecíiia disse...

Um bodoque acertou-me em cheio o coração...

Mas Fênix que sou,

retornei das cinzas

transbordada em beija-flor...

Rosário Pinto disse...

Cara, beija-flor e qualquer outros animal e\ou insetos são sagrados... nem pensar em associar com estilingue, bodoque, baladeira ou outro instrumento qualquer. Quando crianças, somos cruéis....
rosário pinto