Edmar Oliveira
Àquela noite dormi como um anjo, embalado ao deslizar do rio, do grilo cantante e do sapo resmungão. Sonhei com um menino numa canoa, remando rio arriba, entre canaranas, pescando piaus, ancorado a uns galhos de Maria-mole. E sabia que a isca do anzol era o palmito de um buritizal do brejo perto de casa. Senti um gosto de guabiraba na boca e acordei, ainda escuro, no cantar de um galo batendo as asas no quintal. A manhã vinha chegando vagarosamente com um pouco de claridade refletindo o rio manso. O galo já tinha cantado mais de três vezes e eu ali não negava aquela beira de rio, por onde fui posto no mundo.
Àquela noite dormi como um anjo, embalado ao deslizar do rio, do grilo cantante e do sapo resmungão. Sonhei com um menino numa canoa, remando rio arriba, entre canaranas, pescando piaus, ancorado a uns galhos de Maria-mole. E sabia que a isca do anzol era o palmito de um buritizal do brejo perto de casa. Senti um gosto de guabiraba na boca e acordei, ainda escuro, no cantar de um galo batendo as asas no quintal. A manhã vinha chegando vagarosamente com um pouco de claridade refletindo o rio manso. O galo já tinha cantado mais de três vezes e eu ali não negava aquela beira de rio, por onde fui posto no mundo.
A mesa arrumada por Zenóbia, a dona do rancho em que estávamos hospedados, era de uma fartura sertaneja: beiju, cuscus de milho, bolo de goma, café com leite, vitamina de abacate e suco de goiaba. Geraldo, meu companheiro dessa viagem, lambia os beiços querendo aumentar o sabor de um café, que nem tão cedo experimentaríamos novamente. Enquanto tomávamos café (aquele café!) olhávamos umas fotografias que eu fizera no forró de ontem à noite e Zenóbia identificava os pares de dançarinos pelo nome. Um deles, muito mais baixo do que a parceira, era identificado por “Coronel”, um tipo muito popular na cidade. Zenóbia correu pra mostrar a auxiliar a “presepada” do “Coronel”. Ele sempre tava metido em uma, comentavam.
Depois do banquete no “Tibungo”, na beira do rio Parnaíba, chegara a hora da partida. Tínhamos que deixar a nossa Palmeirais, que tanta emoção nos trouxera na viagem. Arrumamos os embornais, nos despedimos da rancheira e partimos.
O carro rangia vagarosamente no calçamento irregular. Paramos na igrejinha da praça para uma última foto. Mais adiante paramos no mercado para ver a feira. Qual foi minha surpresa ao ver o “Coronel” meio largado, com os olhos cansados de ressaca, conversando com duas barraqueiras. O baixinho feio parecia gostar muito de mulher. Depois da noitada, já estava ele ali de prosa nova. Mostramos a foto pra ele que ficou contente.
Entramos novamente no carro, contornamos a praça da matriz e pegamos a estrada. Atravessamos o riacho do Cadoz deixando Palmeirais para trás. Tinham nos falado de um porto de travessia para a cidade de Parnarama, logo depois do Cadoz. Achamos uma estrada carroçal e emburacamos na bicha. Depois de muito andar percebemos que estávamos paralelos ao rio e não indo a um porto. Eu senti uma angústia no peito, como se aquela estrada de terra, das parecidas com as estradas da minha infância quisesse nos reter no passado. Com medo do mistério demos marcha ré e voltamos ao asfalto.
Fizemos outra parada no Riacho dos Negros, para uma água fria e pegamos a estrada, procurando os Estados Unidos, que tínhamos perdido na ida. A nomeação pomposa que meu tio Tancredo dera à sua propriedade tinha um significado nas minhas lembranças. Um campo de futebol imenso, para que seus filhos (na quantidade de duas equipas) exercitassem o corpo. Uma venda e a casa grande com um muro onde se lia “Estados Unidos”. Essa imagem não tinha achado antes e nem achava agora. Só depois entendi. A estrada perdeu a curva, ficando mais reta, a casa grande ficara muito longe, na beira do rio, e a uma casa nova fora erguida junto ao novo percurso da estrada. Isso não estava nas minhas lembranças.
Depois de muito perguntar, chegamos. Ao vendeiro perguntei se era o Leonan, meu primo. Era seu filho com seu semblante que eu tinha retido no passado. Fomos à nova casa da fazenda, que parecia desabitada. Arrudiando a casa pelo quintal dei de cara com minha prima Valésia, que fazia uma obra num barracão. Me reconhecendo, correu ao meu encontro. E começou a conversar, como sempre fazia, sem parar. Apresentei o Geraldo e pareceu que eles se conheciam de muito tempo. Logo, logo, ela só falava com ele. Valésia foi buscar minha tia Judith, que estava numa cadeira de rodas, mas absolutamente lúcida. E conversamos muito. Eu com a tia, Geraldo com Valésia. Ele falava de seu romance recém publicado. Ela pegou um leptop e começou a ler o seu. E discutiram como já se fossem velhos amigos. A literatura une os solitários amantes das palavras.
Eu falava com minha tia do passado e a ela essa conversa fez os olhos brilharem como se falar daquele tempo fosse o único assunto agradável de agora. E já, já, me vi mergulhado num cenário em que vivi menino nas lembranças da minha tia.
Tínhamos que ir. Tínhamos que deixar o passado. A viagem, fabulosa, precisava acabar. O passado pode alimentar a alma para que estejamos mais felizes e possamos forjar nosso caráter no presente. Pegamos a estrada para a capital, que fora o nosso destino no passado. Agora ela era apenas uma passagem para o aeroporto. Tínhamos que voar para voltar ao presente e viver o futuro que ainda nos resta...
__________________________fotos: o "Coronel" dançarino; a igreginha; Geraldo e Valésia; minha tia Judith e Leonan
5 comentários:
Olá Edmar,
Que viagem fantástica hem? Lembrei-me do seriado que assistia quando criança ( Viagem ao túneo do tempo ).
Abraços,
Moisés Oliveira
Apenas um agradecimento. Através do post no facebook, cheguei ao seu blog. Fico freguês.
Abraços,
Paulo Batista
Apenas um agradecimento. Através do post no facebook, cheguei ao seu blog. Fico freguês.
Abraços,
Paulo Batista
Só quem tá fora a tempos de sua terra natal entende o valor dessas memórias. Elas tem cheiro e sabor.
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