quinta-feira, 13 de agosto de 2009

NUN-SE-PODE

1000TON



Dia desses, saindo da casa de um velho amigo, em Vila Isabel... ela estava desaparecida há tanto tempo...me esbarro com Lindonéia. Estremeci. Ainda não refeito da surpresa, tentei entabular um papo, ôi, que bom te ver, bela, estavas sumida... e ela me socorreu: é, eu dei um tempo, sabe? Depois da morte do Guerchman eu fiquei meio recolhida mesmo. Sei lá, os pés-sujos estão sumindo, a boemia tá meio devagar, a Lapa, By Tv Globo, é zen-graça. Ah! E depois você acha um boteco legal, e a tv ligada no Jornal Nacional? É um desreispeito, né?
Cara, bom te ver também, ela pega na minha mão e fala que vai me levar num cantinho legal, logo ali na Praça 7, e eu, com meus botões, não acredito nisso, acontecendo comigo agora...
O estabelecimento era muito simpático, acolhedor, e por que você escolheu esse lugar? Ela aponta: dá uma olhadinha praquele canto da parede. Cáspite! Deparei-me com um exemplar autêntico do mestre Milton Bravo (e pai), ainda num bom estado de conservação. A data não dava pra ver direito, mas estava lá escrito o número do telefone com 6 algarismos.
Você vai beber alguma coisa? Ela ficou olhando para uma prateleira de vidro ensebado, debaixo de um São Jorge, com luz roxa, flores de plástico, o pequenino cálice com a bebidinha do santo e tudo: Eu vou tomar uma cachacinha. Qual? Peraí, ainda estou decidindo, e levantou-se para melhor escolher sua marvada, numa grande fileira de opções.
Cachaça da boa, dando uma de entendida, pode conferir, a gente escolhe pelo rótulo. Como assim? Ah! Não sei explicar direito... Aquele que, quase sempre, tem um engenho desenhado, bem naif, com letras de tipos misturados, tem letras art déco, tem uns que até lembram obras do Rubens Gerchman. Não tem erro...
Eu achei muita graça naquilo, sentou-se, pediu sua dose da marca escolhida e eu fui na dela, pedi igual. Realmente a diaba era muito boa mesmo.
Lindonéia, naquele quadrespelho do Guerchman você está um pouco diferente, né? Ela riu e falou: aquela não sou eu não. É minha irmã mais velha. O Hélio Oiticica apresentou ela pro Rubens, num baile da Mangueira. O nome dela é Dulcinéia, aí a obra foi feita, mas o Rubens achou o meu nome mais bonito e botou no quadro. Aliás eu acho essa obra o máximo. Tem muita coisa de Nelson Rodrigues, que, como ninguém, entendeu toda a hermenêutica do subúrbio. É verdade...Ficamos conversando sobre arte popular, contracultura, Tropicália, e, em dado momento ela mandou:
Sabe, eu acho que o homem brasileiro, quer dizer, a nossa gloriosa raça mistureba, é um amalgamado assim: entra o homem cordial do Sérgio Buarque de Holanda, mais o Macunaíma do Mário de Andrade e o João Grilo do Suassuna. Perguntei se a gente não podia engrossar essa porra, digo essa geléia-esperma-geral brasileira com o Sepé Tiarajú, o nosso índio guarani, o Manuelzão do Guimarães Rosa, o Zumbi dos Palmares, quem mais? Xõ vê...Ah! O Jeca Tatu, do Monteiro Lobato... e ela, já meio alegrinha: Jecatatu, cotia não! E soltamos risadas, e brindamos, orgulhosos dos nossos genealógicos eleitos.
Daí a pouco, me batendo no braço: vou ali no toalete e já volto. No caminho gritou o nome do gerente, pediu uma chave, dizendo ser duma salinha dos fundos e fiquei aguardando.
De repente, Cascatinha e Inhana, em “Meu Primeiro Amor”, escorre pelo ambiente. Linda está voltando e avisa: vamos continuar a prosa que tem mais. Fiquei assaz curioso. O papo foi conduzido para a nossa MPB. Agora “Índia”, com a mesma dupla, fremia no ar.
O tempo indo ligeirinho, nosso lero-lero com calientes boleros. Faz-se hora, vamos nessa? Ela propôs, quando já terminava a série musical com a Ângela Maria.
Na saída, Lindonéia pegou seu batom e desenhou um nariz de palhaço, num Guevara, pintado na parede do corredor de passagem. O gerente grita: Pô, Linda! Vou ter que tirar essa mancha aí de novo? Respeita o nosso camarada! E ela: Calma! Hay que endurecer, sin perder la ternura, el humor e el tesón!...Deu uma gargalhada e foi saindo na frente.
Quase na porta, olhei pra trás pra dar mais uma olhada no Milton Bravo e, quando me volto para a rua, Lindonéia, cadê? Senti um arrepio e um cheirinho de enxofre no ar que foi sumindo, sumindo, e eu olhando prum lado, olhando pro outro, olhei pra baixo e vi um lencinho violeta bordadinho, caído no chão.
Peguei e senti um cheiro inconfundível: COLÔNIA ROYAL BRIAR.

Um comentário:

Sandra Chaves disse...

Adorei, embora seja suspeita pra isso.