Quem provocou foi o Luiz Fernando Veríssimo. Numa crônica de Natal em que dizia ter recebido uma carta de Papai Noel, respondendo a um pedido seu de 1942, falou do presente ganho naquele ano: um revólver de brinquedo que simulava tiros disparando espoletas. Pois se o mestre diz que brincava de ser o Vingador com seu revólver, tomei coragem para contar das minhas brincadeiras de “cowboy”. Confesso que tive um revólver, reluzente, imitando prata, com cabo parecendo madrepérola. Tal qual o do Zorro, aquele amigo do Tonto. Com uma cartucheira que permitia o saque rápido e, esse era todo o diferencial, uma serpentina de espoletas que faziam tiros seqüenciais em números parecidos aos tiros dados pelos mocinhos nas telas de cinema: quase sem fim. E lá ia eu, montado no meu cavalo de pau da carnaúba, atirando a esmo, mas acertando em todos os índios e bandidos da minha imaginação, envolto na fumaça dos sonhos e cheiro de pólvora do quebrar intermitente das espoletas que pipocavam como tiros das telas do cinema. Em alguns momentos adentrava no “saloon” imaginário, pedia meu copo de leite, e desafiava o malfeitor para um duelo, no qual era necessário ser muito rápido no saque e atirar em continuidade para matar um bandido feito visão retirada da memória do cinema.
E quantas vezes fui Rocky Lane, Hopalong Cassidy, Roy Rogers, Durango Kid ou Kid Colt em várias aventuras que saiam de dentro da minha cabeça. E nestas aventuras, meu revólver disparou mais tiros do que nos filmes que assisti. E quando acordei deste sonho infantil as serpentinas de espoletas não funcionavam mais e o revólver não era de prata com cabo de madrepérola. Fiquei gritando pelo Shane, que saia de dentro de mim para nunca mais voltar, como na cena final de “Da Terra Nascem os Homens”.
E fui crescendo e esquecendo aquelas cenas que habitaram minha infância. Sempre soube que os tiros eram de festim e nunca consegui colocar uma arma de verdade na minha mão. Tenho medo das armas de verdade na mesma intensidade do fascínio pelos tiros de mentira da minha meninice. Sempre pensei que os brinquedos da infância não determinam o comportamento do adulto. Quando ouvi o Veríssimo dizer que foi o Vingador com seu revólver, sem que isso pareça lhe causar danos, me atrevi a escrever sobre uma brincadeira infantil que hoje não é considerada “politicamente correta”. Pois lhes garanto: não me fez mal nenhum.
Entretanto, lendo “Falcões: os meninos do tráfico”, de MV Bill e Celso Ataíde, vemos que as brincadeiras dos meninos nas comunidades carentes de agora retratam a violência da guerra que ali acontece de verdade. E que a crueza das brincadeiras está muito próxima da realidade e quase que a produzindo. A narração de cenas infantis descreve a tortura e a violência que lemos nos jornais com um realismo mágico antecipatório e não no gênero literário. E que estas brincadeiras infantis de agora quase que preparam o caráter do jovem de amanhã.
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O que teria mudado no tempo? Mudamos nós ou mudaram as brincadeiras? Arrisco um palpite: o meu revólver prateado de cabo de madrepérola fazia parte de uma indumentária do herói imaginário. Claro que o chapéu e as roupas do Hopalong, se não eram imitadas de verdade, se imaginava tal e qual a fantasia do cartaz de cinema. Já os meninos das brincadeiras de agora imitam os irmãos, conhecidos e invasores reais de sua comunidade. E a guerra real acontece na rua ao lado, embaixo ou acima. Ontem nós brincávamos com a imaginação. Hoje a brincadeira é com a realidade...
No alto William Boyd "Hopalong Cassidy" em cartaz de cinema "A Volta de Hopalong". Acima divulgação de "Tropa de Elite"
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