domingo, 2 de fevereiro de 2014

Como Bashir, a cabra, expulsou os demônios



Ivan Lessa




 Em nome de Alá, o Misericordioso, e Maomé, seu Profeta, juro pelo sagrado Corão e a Sunna que os eventos que passo a narrar são verdadeiros e reais como as estrelas no céu e as areias no deserto.
Tendo eu, Nazim, o Pastor, passado a noite de Jebrab para Haa em companhia de Tamila, filha de Khalkoum, o Funileiro, viúva de Fahrquas, o Ladrão, de acordo com os preceitos básicos estabelecidos pelas Sagradas Escrituras e a interpretação do Conselho Religioso para Questões Conjugais e Extra-conjugais, observando as regras do ciclo menstrual e as subsequentes abluções purificadoras, deixando para Khalkoum, o Funileiro, a quantia pré-estabelecida de 18 nokhods (3 gramas de ouro) , a ser distribuída entre os pobres, caminhava de volta para a minha humilde choupana, recitando as orações de praxe para tais ocasiões, quando, subitamente, senti a Natureza, louvada seja ela, a me chamar. Eis que à minha frente, providenciais, três palmeiras se erguiam fornecendo guarida para o meu pudor e oportunidade para o meu corpo expelir suas impurezas. Agachando-me com o natural cuidado de não dar nem as costas nem a frente para Meca, a túnica presa entre os quatro dentes que me restam na boca, comecei a obrar enquanto meditava sobre os ensinamentos do Profeta.
Já me preparava para o ritual de purificação, cuidando de não o fazer com osso ou papel com o Nome Sagrado inscrito, quando, de todos os lados, meus ouvidos foram invadidos por ruídos infernais. Lembrei-me do Ano Bacr, quando a Terra se abriu para devorar aqueles que pecaram contra os Mandamentos e a Ordem das Coisas, conforme ensina o Imã. Que nova infâmia os habitantes de Tabas haviam praticado para merecer tal castigo? Meus pensamentos corriam e meus pés também, buscando a proteção de minha moradia e a companhia de meus fiéis amigos, Bashir, a cabra, Shasta, a galinha, Ruyollah, a mula, Jahfat, o burro e Sadaq, o cavalo.
Que eu vire pelo avesso e meu olhos se voltem para dentro se o que narro a seguir não é verdade.
Gafanhotos gigantescos, maiores que a Sagrada Mesquita de Mehlek, baixavam dos céus à Terra, se não subiam da profunda dos infernos, e de suas bocas horrendas demônios monstruosos eram vomitados. Uma luz mais brilhante que mil sóis no deserto se fez desde a tenda em Abas até o poço de Adwan. Só Alá sabe a distancia que separa Abas de Adwan. Juro que a própria noite roncava, gritava e uivava, como se parindo todas as obscenidades mencionadas nos Livros I,II,III e VII de Al-Aqbar, proibidos porém familiares a meus ouvidos impuros graças às narrativas de Hassan, o Idiota, e Godjadeck, o Poeta - malditos sejam para sempre
Não bastassem, os pais dos Gafanhotos-Demônios, vastos como a vaidade das mulheres, imensos como a cobiça dos homens, pousavam em areias milenares. De seu interior, igualmente, de um orifício que supus ser o centro expelidor de fezes, demônios monstruosos surgiram. Meu corpo inteiro tremia como as palmeiras quando bate o Frahsib no mês dos grandes ventos. Abracei-me a Bashir, a cabra, e orei ferozmente pedindo misericórdia de uma morte instantânea. Alá, no entanto, em sua sabedoria, não o quis assim.
Centenas de Demônios enlouquecidos corriam por todos os lados falando a língua dos infernos. Suas faces hediondas estavam cobertas de todas as imundícies de Satã. Em suas mãos, falos grotescos apontavam para todos os lados ameaçando nefandas violações. Gritavam entre si mais que Mareq, o curandeiro, quando expulsa de Vahdir, o Grande Doente, a alma das cobras, dos porcos, dos abutres. Pobre Bashir, tremendo assustada junto a mim. Infeliz Shasta, desgraçado Ruyollah. Quem chorará por Bahdyi, Quam e Jahfat? Que anjo em que paraíso cavalgará o doce Sadaq?
Seguramente Alá e seu Profeta falam com os animais, pois Bashir, de um salto, viu-se livre de minhas mãos escalavradas e correu, balindo como um nascido na Cerimonia da Circuncisão, em direção às diabólicas aparições. Três dos Demônios - agora pude ver que sob a cabeça obscena, em tudo igual à coroa do cetro másculo, cabelos loiros como as das cortesãs de Pahlavi,o imundo que sua alma apodreça nos infernos - com seus 32 olhos viram o santo animal disparando de encontro a eles. Quatrocentos jatos de sêmen de fogo riscaram o ar e a inesquecível Bashir tombou como uma folha de Palmeira nas areias ora escaldantes de chamas diabólicas. Mas Alá em sua providencia, quis que os Demônios-Loiros se confundissem, pois, assustados com a súbita ejaculação, começaram a apontar e a disparar seus falos nojentos aos quatro ventos. Um dos gafanhotos infernais impregnado do liquido Maldito, explodiu como explode por dentro o Homem quando este conhece Mulher. Os Demônios-Loiros, saciados em seus desejos imundos, imprecavam e corriam, corriam e imprecavam, numa dança ritual macabra. O sêmen ardente continuava a jorrar. Muitos tombaram ao chão se contorcendo de prazer. Outros Gafanhotos-Infernais se imolavam. Tudo era chama e calamidade, confusão e caos. Corri e tomei Bashir ao colo enquanto gritava, com toda forca dos meus pulmões, a prece indicada para Rituais fúnebres. Poderosas são as palavras com que Maomé falou aos Homens. Exorcizados, ao me ouvirem, voltaram, sempre aos gritos, pelo orifício imundo de volta ao ventre nojento que os havia expelido para a pratica de suas abominações no sagrado deserto de Tabas.
Num piscar de olhos, subiram aos céus e empreenderam jornada para o Horror de onde nunca deveriam ter saído, deixando atras de si as marcas satânicas de sua passagem.
Fui até as palmeiras onde, alguns momentos antes, havia deixado as impurezas de meu vaso sagrado sobre a terra. Atirei-as com minhas próprias mãos sobre os restos dos Demônios-Loiros e para os céus no rumo em que as grandes aves matálicas haviam desaparecido, cuidando sempre de não arremessar minhas fezes na direção de Meca.
Enterrei Bashir, a cabra, disse as preces adequadas e busquei meu justo repouso, aninhado, na terra, junto à presença reconfortante de Shasta, a galinha, Ruylloah, o galo, Bahdyi, o camelo, Rahzim, o bode, Quam, a mula, Jahfat, o burro, e Sadaq, o cavalo.
Pela manhã, fui com Khalkoum, o Funileiro, e sua filha Tamira, ver o que restara das aparições da noite anterior.
Teria eu delirado? Seria castigo, justíssimo, de Alá, por ter cometido impurezas com a filha de Khalkoum, o Funileiro?
Hassan, o Idiota, e Godjadek, o Poeta, lá estavam urinando, porém não em direção à Meca, sobre os escombros demoníacos, os restos satânicos. Fora tudo verdade. Este o relato fiel desse pobre vassalo de Alá, o Misericordioso, e Maomé, próxima às três palmeiras, situada entre Abas e Adwan, no deserto de Tabas, e que atende, e atenderá até que seja chamado aos céus, pelo nome de Nazim, o Pastor.


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Recebido de Luiz Carlos Oliveira e Silva um dos melhores do genial Ivan Lessa.
(Do arquivo de Mauro Imbilicieri)

Ivan Pinheiro Themudo Lessa (São Paulo, 9 de maio de 1935 — Londres, 8 de junho de 2012) foi um jornalista e escritor brasileiro.1 2
Filho do escritor Orígenes Lessa e da jornalista e cronista Elsie Lessa.1 Era neto do pastor presbiteriano Vicente Temudo Lessa e bisneto do escritor e gramático Júlio César Ribeiro Vaugham, autor, entre outros, do romance naturalista A Carne e também criador da bandeira do estado de São Paulo3 . Ivan foi editor e um dos principais colaboradores do jornal O Pasquim, onde assinava as seções Gip-Gip-Nheco-Nheco, "Fotonovelas" e Os Diários de Londres, escritos em "parceria" com seu heterônimo Edélsio Tavares. Lessa publicou três livros: Garotos da Fuzarca (contos, 1986), Ivan Vê o Mundo (crônicas, 1999) e O Luar e a Rainha (crônicas, 2005).1 . Ivan Lessa morava em Londres desde janeiro de 1978 e escrevia crônicas três vezes por semana para a BBC Brasil.1
Ivan Lessa criou junto com o cartunista Jaguar o ratinho Sig (de Sigmund Freud), baseada na anedota corrente da época na qual se dizia que se "Deus criou o Sexo, Freud criara a sacanagem". O ratinho se tornou símbolo de O Pasquim, aparecendo também nas capas da coleção "As anedotas do Pasquim", publicada nos anos 70 pela Editora Codecri.1
Ivan Lessa também escreveu em 2003, a apresentação para o livro A sangue frio (1965), de Truman Capote, que em nova edição no ano de 2009, integrou a Coleção jornalismo literário, junto de outros livros renomados, como Berlim de Joseph Roth e Hiroshima, de John Hersey.
 

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