domingo, 16 de fevereiro de 2014

Vovô viu a uva


(Edmar Oliveira)
Gervásio
Não tinha a menor noção do que seria ser vovô. Sempre foi uma coisa muito longe para ter que imaginar. Lembrava da minha experiência de neto. Meu avô Pedro Solano me acordava de manhã cedinho, cuidando para que minha mãe e minha avó não notassem, e me levava para assistir a matança de um bode, com o que eu já passara a noite sonhando. Ele era açougueiro em Palmeirais e vendia bode no Mercado. Eu passei muitos dias implorando para assistir a primeira matança do bode. Depois da primeira vez, muitas vezes fui com ele nessa aventura. Primeiro passava um café forte sem coar e com muita borra, adoçado com rapadura. Eu fazia cara feia, mas tomava o café de macho, como ele dizia. Depois ele dependurava o bode berrando de cabeça pra baixo numa forquilha e me repetia sempre: “daqui vem aquela frase ‘o bom cabrito não berra’, porque se fosse carneiro não tinha esses gritos”. Com um cacete certeiro botava o bode pra dormir e parar de gritar. Depois sangrava, tirava o couro, que espichava com talos de coco babaçu. O cabrito desnudo era esquartejado e ele me ensinava que o osso da parte traseira tem mais tutano que o dianteiro. Separava os cortes grandes que eram mais divididos no mercado.

Tá bom, sei que vocês estão escandalizados com a minha história. Os tempos são outros e nessa era do politicamente correto e impensável um avô fazer um convite desses ao neto. Mas declaro, defendendo as boas intenções do meu avô, que ele só queria passar seus conhecimentos de forma irresponsável para o neto, sem a preocupação de educar, que é uma tarefa responsável dos pais. Ainda tenho a declarar que assistir àquelas cenas de outros tempos não me tornou um serial killer, apesar de presenciar a matanças de bodes por um bom tempo e em série. Não me marcou, como o personagem do Silêncio dos Inocentes foi marcado pelo tio matador de carneiros. Nem me tornou uma pessoa insensível, perversa. Pelo contrário, acho que sou muito sensível aos dramas humanos, tanto quanto fui insensível com a matança do bode, que, aprendi cedo com aquele velho, era apenas o ganha-pão daquela família, além de se prestar a mais nobres das funções humanas, a alimentação. Tenho essas lembranças como dóceis e carinhosas, mesmo que vocês não acreditem. Ainda agora vejo o sorriso matreiro do Pedro Solano, com a barba por fazer, chiando e tossindo sem reclamar do enfisema que o matou. Sua arte era matar o bode, espichar bem o couro usando varas verdes que só depois endureciam, e dividir o bicho em cortes da perna traseira, dianteira, costelinhas, espinhaço, vazios, partes que aprendi a identificar ainda naquele tempo. E aprecio o cabrito como uma das melhores carnes, sem traumas e sem culpas.

A aflição que tive em ver meus filhos pequenos, que já choravam por uma responsabilidade minha ao nascer (pensava eu), não tive ao olhar ternamente meus netos, mesmo que esperneassem. Como disse um amigo meu, também vovô, com os netos é que a gente vai aprender que não vale o esforço e aflição dos pais preocupados com a responsabilidade. Se os filhos chegaram aonde chegaram, os netos podem ir muito mais longe. Pais são marinheiros de primeira viagem. Avôs já sabem até onde essa viagem pode ir. Antes do fim aporta na felicidade. Talvez se meu pai fosse o matador de bodes eu ficasse escandalizado. Mas como era meu avô, eu tinha certeza que aquele bom velhinho fazia a coisa certa. E fazia.

Agora eu entendo o “Vovô viu a uva” das cartilhas de alfabetização. Tudo é doce, uma verdadeira uva, na visão dos avós.
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E não se preocupem que eu não vou ensinar aos meus netos a matar bode. Mas apenas contar pra eles que carne não nasce no supermercado e que a culinária é arte que desenvolvemos para esquecermos que somos um animal predador.


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