(Léo Almeida)
Acabo de ler, de uma levada, Terra do fogo (Vieira & Lent Casa Editorial, 2014), de Edmar Oliveira, e devo confessar que escrevo ainda no calor da leitura, portanto, relevem qualquer falha da minha reles análise da obra. Narrativa ágil, clara, instigante, o romance é uma prova de que, para se fazer boa literatura, não é necessário abrir mão de se contar uma boa história. Experimentalismo e vanguardismos a parte, a terra do fogo de Edmar Oliveira é o terreno de uma história bem contada, narrativa bem construída. Sua substância é a memória e sabemos que a memória é um bicho escorregadio e, no mais das vezes, não confiável. Quem empreende uma busca por fatos vividos há tempos, sabe muito bem o desafio que cenas e versões de eventos se lhes apresentam. Na verdade, e já me pego em paradoxo, não há fatos, mas versões dos fatos, como não há verdades, mas muitas delas, cada uma se clamando mais verdadeira. O narrador, diante dessa batalha ingrata, sabe que as coisas que lhe vêm à memória, não são mais as coisas brutas como devem ter se dado, mas passagens filtradas pelo tempo e pela re-visão do adulto. É sempre uma Viagem, com maiúscula mesmo, o processo de narrar o que a memória se nos oferece. Uma descrição magistral da dificuldade do memorialista encontramos no capítulo inicial de Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos. “Nesta reconstituição de fatos velhos, neste esmiuçamento, exponho o que notei, o que julgo ter notado. Os outros devem possuir lembranças diversas. Não as contesto, mas espero que não recusem as minhas: conjugam-se, completam-se e me dão hoje impressão de realidade” é o que nos diz um Graciliano memorialista e bem podia estar na pena do narrador de Terra do fogo.
Edmar Oliveira sabe – ou pelo menos lhe é muito familiar - os segredos dessas ligações sinápticas da memória, mas mais ainda, pressente o turvo tubo televisivo em que os eventos se apresentam. Com a mão parcimoniosa do bom escritor, ele vai construindo o mistério que prende o leitor desde a primeira frase. Quem é Jaci? Quem é Alarico? Onde e o porquê dos incêndios? Esse triângulo de objetos dramáticos explode em histórias paralelas e personagens com registros históricos na vida piauiense de meados do século passado.
O livro quer tratar de um fato real acontecido na década de 1940, em Teresina. Habitações da periferia, em sua esmagadora maioria de madeira e palha, sofreram sucessivos incêndios. Além da perda de algumas vidas, a eliminação de um modo de viver. A partir desse drama social, Edmar resolve investigar os tais incêndios, tendo como pano de fundo as implicações políticas do Estado Novo nas vidas de seus personagens. A meu ver, os incêndios não passam de uma alegoria de um país em chamas. Apesar de nunca totalmente solucionado o problema, ou seja, seus causadores encontraram o descanso eterno sem que lhes houvessem identificado e aprisionado, sabe-se certamente quem são, quem foram e porque fizeram tal barbaridade. Um processo de limpeza social, de especulação imobiliária, de maquiagem de classe, se deu naqueles eventos. A combustão dessa tragédia é, pois, mera projeção dos incêndios provocados pelo estado opressor de Getúlio Vargas na vida social do país. As torturas, o exílio, as prisões sem justificativa, a prepotência do estado e a arrogância de seus “chicoteadores”. Ao tentar impor a força um país novo, moderno, Getúlio haveria de, necessariamente, acabar com o cenário existente. Se em Teresina, a decisão foi incendiar as choupanas caboclas; no Brasil foi eliminar, por prisões e tortura, qualquer maneira de pensar diferente. Lá, as habitações feias e maltrapilhas a sujar a paisagem da cidade que se queria moderna, linda como o Rio de Janeiro e Paris, como destaca um dos personagens, por sinal um braço direito do Estado Novo, não por acaso batizado de Alemão; no âmbito nacional a ameaça comunista, integralista ou qualquer “ista” que significasse não compactuar com o ideal de nação moderna de Vargas. A terra do fogo é o Brasil pós 1937, quando Getúlio elimina de uma tacada toda e qualquer pretensão de democracia e instaura o que seria chamado Estado Novo.
As semelhanças históricas e ficcionais são evidentes e tratadas com a dose certa de drama e seriedade. As prisões e tortura de Alarico, do Enfermeiro e Cobra d’água, vêm bem ao encontro da prisão de inimigos do regime de Getúlio e nos remete, especialmente, à prisão de Graciliano Ramos que, cativo em Recife, foi enviado a Ilha Grande no Rio de Janeiro, em 1936, sem acusação formal, sem processo, sem culpa destacada. Assim como Graciliano, Alarico padecerá nas masmorras de Evilásio, a mando do Alemão, e será resgatado pela bela Jaci. O velho Graça terá na figura de Heloísa, seu anjo protetor em terras cariocas. Ambos, Alarico e Graciliano, intelectuais pequeno-burgueses alinhados ao comunismo, padecerão os carinhos da polícia política de Vargas.
A contaminação do real pela ficção, em Terra do fogo, é um ingrediente narrativo muito interessante. Promover a junção de personagens reais e fictícios não é novidade, mas é sempre algo muito agradável de se ler, quando bem construído. É esse o caso, a boa construção narrativa de Edmar Oliveira coloca o leitor em contato, guardadas as devidas particularidades narrativas, com uma espécie de “Forrest Gump” tupiniquim. Curiosa e patética a passagem em que Alarico tenta resolver seu drama com a intervenção do coronel Torquato Araújo, personagem histórico, chefe de gabinete do governador do Piauí (na verdade, o interventor do Piauí, homem de Vargas). Depois de longa espera em seu gabinete, a cruel fatalidade de que o coronel Torquato não poderia atendê-lo, pois sua filha Salomé acabara de parir Toquato Neto, ícone da cultura do Piauí e da Tropicália. O autor promove a frustração de seu personagem, justamente lembrando o nascimento do grande nome da poesia piauiense dos anos 1970.
Perdoem-me a sibilância da frase, mas a história de Jaci, por si só, já seria um romance inteiro. Ao optar pela construção do triângulo amoroso Jaci, Alarico e Alemão, e a presença de personagens orbitando o mundo desses três, entre eles os próprios incêndios - personagens mudos, porém eloquentes, o autor viu-se impelido a ser econômico. Refiro-me particularmente a possibilidade perdida de mergulhar na alma de cada uma dessas personagens, mas aí, seria outro o romance e não o belo Terra do fogo.
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