Edmar Oliveira
A única diferença era o chão calçado. Não era mais aquela rua de areia branca onde andaram meus pés descalços. A cidade era a mesma, só que como eu crescera ela parecia ter encolhido. Mas as casas, as praças, o cemitério, a igrejinha, tudo como guardara dentro de mim, só que de tamanho mais diminuto que nas minhas lembranças. A realidade vista era bem menor que as memórias em mim guardadas. Mas as miniaturas correspondiam às imagens grandes armazenadas. Elas se derramavam na realidade naquele passeio de fim de tarde. Comentava com Geraldo: aquela cidade ficara conservada no tempo. As calçadas, as pessoas sentadas na calçada, esperando o dia acabar como sempre tinha sido. Geraldo, parceiro dessa aventura em busca de nós mesmos, caminhava ao meu lado. Dois velhos se faziam meninos em calças curtas. Falávamos das baladeiras, da procura das guabirabas, de mangas e dos seus tipos e das mangueiras e suas sombras.
De repente algo nos incomodou. A praça na frente do cemitério não tinha mais o campo de futebol. Tinha um ginásio coberto, que acobertava nossas lembranças e enfeiava o cenário. Como é que eu podia lembrar do Lauro Barbosa a cavalo, dando tiros pro ar, atravessando o campo de futebol galopando garbo, com aquele trambolho que impedia a reminiscência de um menino admirando o facínora? Fizemos de conta que aquele ginásio não existia. Ele não cabia em nosso passado. Continuamos andando.
No final da rua que margeava o rio, a última casa repedia a casa do meu avô no passado, mas com algumas diferenças. As paredes de taipa estavam rebocadas e pintadas de amarelo; o telhado de palha estava com telhas de cerâmica. Mas a imagem, mesmo um pouco modificada, era uma peça que se encaixava no quebra-cabeça das minhas lembranças. Foi de forma incontida que solicitei a dona da casa, que aguava as flores de um jardim no quintal, que me deixasse entrar. Geraldo foi comigo.
Tudo naquela casa me era familiar, os quartos não tinham mais as marcas da fumaça da lamparina a querosene, mas o espaço, agora na luz elétrica, era o mesmo. O forno da cozinha estava de barro novo, mas repetia as minhas lembranças. O jardim tinha o mesmo perfume e as flores de minha avó Maria, a mãe Velha, como todos os netos chamavam.
Escurecia, mas mesmo assim atravessei o quintal onde o Pedro Solano matava bodes nas madrugadas escuras. Escutei o berro do bode e via o meu avô espichando o couro do bicho com talos de cocos verdes, que envergavam na secagem da pele do bode. E via o bode pendurado numa forquilha, sendo esquartejado pelo Solano, que fazia tudo isso com uma destreza admirável e sorria com sua tosse efizematosa, tendo uma ponta de cigarro “pau-ronca” no canto da boca. As imagens eram fortes, mas só sentia a dor da saudade. O Pedro Solano me dava um café com borra, adoçado no bule, feito numa trempe ao lado do bode dependurado, já nu, sem o couro. Depois cortava em partes para levar ao seu açougue no mercado. E eu, de cócoras, assistia aquele espetáculo fascinado, desejando ter coragem para matar um bode quando ficasse homem. Naquele momento, já velho, só sabia chorar, embriagado naquelas memórias...
Disfarcei as lágrimas contando ao Geraldo como meu velho avô, além de ter uma roça no outro lado do rio, do lado de cá, no seu quintal, fazia vazantes nas cheias do rio, plantando melancias, melões de cheiros inconfundíveis, feijão e milho.
Na beira do rio, num escurecer que se faz devagarzinho, olhamos uma canoa adormecida, fazendo água, esperando que o dono a desamarrasse para que ela ganhasse vida, singrando as águas a procura dos piaus que se escondem por debaixo das canaranas na beiro do rio que desliza preguiçosamente em silêncio...
_____________________________
Ainda faltam dois capítulos. Foto do forno da minha avó e canoa adormecida. Para ler os anteriores coloque Viagem ao Passado na pesquisa do blog.
Um comentário:
Olá meu irmão,
Não tive como evitar as lágrimas novamente, ao ler mais uma vez esse relato dessa sua viagem com o amigo irmão Geraldo Borges. Nesse pedaça de chão, vivi muitas emoções.
Moisés Oliveira
Postar um comentário