Edmar Oliveira
“Quantas lembranças num só dia”, Geraldo comentava enquanto passávamos no portão do cemitério – “nossos antepassados estão enterrados aqui”. Olhei pelo portão as catacumbas que parecia só ter anjinhos, de tão pequeno que era o local dos mortos. Pensei como devia ser pequena a nossa árvore genealógica ali enterrada. O mato alto dava um ar de abandono àqueles mortos. E com certeza a mãe Velha e o Pedro Solano repousavam em uma daquelas sepulturas.
Contornamos o cemitério, com a algazarra de meninos que saiam da escola e fomos até o alto, junto ao pátio da Igreja Matriz e do mercado. Já anoitecera, mas ainda cedo para o zunido das muriçocas que anunciavam o ataque noturno. Sentamos na praça do mercado e pedimos uma cerveja. Um pouco de cerveja pede um dedo de prosa e ficamos sabendo, que bem ali naquela quitanda um raio atingiu a rede elétrica matando várias pessoas na cidade. Pedro Solano, o meu avô, e o tio Inácio Teixeira, irmão de minha outra avó, não morreram porque estavam de sandálias de rabicho com solado de pneu, encostados no balcão de madeira da venda tomando pinga. A história, já contada inúmeras vezes desde o seu acontecimento, era repetida por quem devia ser muito pequeno na época, mas contada como se tivesse acontecido há alguns minutos na presença de todos ali.
Engraçado, pensei, o meu avô Sessé, tabelião da cidade, cidadão da antiga vila de Belém que virou Palmeirais, não era lembrado. Tá bom que ele foi embora para a capital há muito tempo e não se enterrou naquele cemitério. Até sua antiga residência, que abrigava o cartório, não existia mais. Mas ele também não era lembrado. Já o Pedro Solano, matador de bodes, roceiro e contador de histórias, era lembrado por toda cidade como uma lenda viva. E eu lembrava naquele momento do seu sorriso cansado, com um cigarrinho no canto da boca, contando uma lorota e mentindo quando dizia que o “corredor” dianteiro do bote tinha tanto tutano quanto o traseiro. Vovó Bebela, esposa do Sessé, nunca engoliu essa conversa do Pedro Solano. Dizia que ele queria lhe passar a perna do bode sem tutano. E o seu neto gostava do “corredor” do bode. O neto, agora velho, se embriagava nessas lembranças com gosto de tutano e carne de bode guisada no leite de coco babaçu.
Para que as lembranças tivessem mais gosto, quando voltamos ao “Timbungo”, nosso bar, restaurante e pensão, Zenóbia tinha prepara uma galinha com os temperos de nossa infância. Não sobrou sequer um osso da galinha, que um gato debaixo da mesa ajudava a terminar quando já tínhamos ruído o osso duro da galinha caipira.
Antes entramos na antiga Usina Elétrica que hoje era uma biblioteca. A Usina de luz continuava iluminando como Usina das Letras. Geraldo fez uma doação do seu livro e o meu já se encontrava na biblioteca. Sentimo-nos queridos filhos da terra, que já que a biblioteca da cidade nos conservava nas suas memórias. Gratos.
Fomos dormir ainda cedo, que a noite caminha muito devagar naquelas paragens. Geraldo dormiu logo e eu não conseguia, tantas eram as emoções que precisavam de digestão junto com a galinha no estômago. Logo um silêncio se impôs ao ressonar do Geraldo e da cantiga de um grilo que desafiava o coaxar de um sapo.
Era lá muito longe, um tum tum de um zabumba que coincidia com o bater do pé na terra do terreiro de festa. Saí do quarto para a noite estrelada que parecia amplificar o som que trazia uma concertina marcando acordes no espaço. Não sei o que me deu, mas fui hipnotizado pelo som que o vento da noite trazia. Entrei no carro, baixei os vidros e segui pelas ruas desertas, dobrando nos cruzamentos por onde o vento me trazia a amplificação daquele forró. A cada curva, sem saber por onde ia, o som aumentava. Cheguei.
Os carros estacionavam num pátio. Os ingressos eram vendidos numa tenda, junto com as bebidas. O ingressante no barracão era marcado com um esmalte fluorescente no braço, para poder entrar e sair quando quisesse. E lá dentro do barracão de palha, os músicos no palco, uma luz estroboscópica rotatória no teto mostrava quadro a quadro, como em fotografia, os casais dançando no salão. Casais de todas as idades, velhos e crianças, no mesmo passo miudinho, cada casal atrás um do outro numa roda anti-horária, como se fosse uma quadrilha sem marcação, muito mais uma mistura de um minueto francês com uma polca boêmia. Claro que na adaptação caipira, que em si trazia a característica daquela comunidade. E não pude deixar de observar que quando me arrisco a uns passos de baião danço muito parecido com o que eu estava assistindo ali nos Palmeirais. Eu sabia fazer aqueles movimentos que, a princípio, pareciam estranhos. Era como se eu carregasse marcado no meu dna o modo de dançar dos meus antepassados. Curiosa observação.
Volto para a pensão, na beira do rio, na noite estrelada. Desliguei o motor do carro e fiquei a ouvir aquele grilo que insistia em desafiar o sapo, que já coaxava rouco. O brilho da noite nas águas calmas do rio Parnaíba me dava a sensação de ter voltado pra casa. Como que eu só tivesse saído para sentir saudades...
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A igreginha e o forró no barracão que mexeram tanto com o coração do cronista...
O último capítulo na próxima edição do Piauinauta.
Se voc~e não leu os anteriores coloque na pesquisa do blog "Viagem ao Passado" (sem as aspas).
3 comentários:
Muito legal, inclusive as fotos, agora fiquei sabendo que até m mega-asteróide teve no Piauí que pode ter etinguido os dinossauros - é mole piauinauta? bjs saudosos
filipe
Sempre o mesmo Edimar.
... que gostosinho. Fiquei com vontade de comer um bodinho ao molho, menino!!!
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