Geraldo Borges
O guarda–chuva que eu estou contemplando não está completamente fechado. Daqui de cima da minha cama vejo que o seu tecido não está esticado, nem bem enrolado em torno das suas hastes. Está meio amarfanhado. No primeiro olhar; achei-o parecido com um corvo, o seu cabo encurvado, adunco, criou em minha imaginação a imagem de um bico. Eu quase me assustei pensando que tinha acordado com um pássaro heráldico, de asas encolhidas, no canto do meu quarto. E até hesitei, na dúvida se estava acordado ou, ainda, dormindo. Mas, aos pouco com a suavidade nítida da luz que entrava pela janela, o guarda–chuva foi se tornando preciso no ângulo de minha visão.
Confesso que este objeto de varetas de aço, pano, madeira, fez com que eu me demorasse a levantar. Passei alguns momentos apreciando a sua textura, o seu relevo. Talvez a negrura de seu tecido me fizesse prestar mais atenção no seu volume. E aí comecei a me lembrar de quantos guarda–chuvas eu perdi durante os invernos de minha vida.
Mesmo chovendo pouco em minha terra eu nunca abdiquei de um guarda–chuva. Quando ia ao mercado, a mais simples feira do subúrbio. Quando ia à igreja usava um guarda–chuva, Quando ia ao cemitério levava outro guarda–chuva. O anterior já havia sumido, perdido em algum lugar. Meu guarda–chuva era uma peça importante do meu guarda–roupa. Se o tempo estava bonito para chover, o guarda chuva estava ali, à mão. Eu era como o meu primo Borges, uma dessas pessoas que nunca ia à parte alguma sem o seu termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda–chuva. Dizem que o texto de Borges é apócrifo. Não sei. Não conheço suas obras completas.
Costuma acontecer grandes secas no Nordeste. Durante estas secas os nossos guarda–chuvas ficam jogados pelos cantos da casa, nos armadores das paredes. Poucos servem de chapéu de sol. As pessoas usam apenas chapéu. Até mesmo porque o chapéu fica quieto na cabeça do sertanejo. E o chapéu de sol você tem de tirar, desarmar, onde entra. Coloca em algum local. E termina esquecendo quando vai embora.
Quantos guarda-chuvas eu perdi por aí, vida afora. Com certeza, eram semelhantes a este, que enche a minha vista ao despertar dessa manhã. Um simples objeto feito em série em alguma fábrica de São Paulo, ou em alguma longínqua e longeva província da China; e vendido por uma risonha comerciaria, em alguma loja de variedades.
Relanço meus olhos pela segunda vez, antes de me levantar, para o meu guarda–chuva. E não sei bem por qual motivo me vem à mente o vulto de Carlito, pelas ruas pobres de Paris, brincando com a sua bengala.
Eu não sei desenhar. Se soubesse o meu guarda-chuva nunca mais seria o mesmo, depois que eu acordei bem disposto, essa manhã, e meus olhos caíram sobre ele. Se eu fosse um pintor eu o faria desabrochar como uma flor dentro da luz diáfana dessa manhã para vê-lo não apenas como um objeto útil, mas um ser alado, que, de repente, me transportou para dimensões estéticas que eu nunca havia percebido.
Levanto. Começa a chover. Tenho de ir à padaria. Tomo banho, mudo de roupa, e pego o meu guarda–chuva. Abro a porta da rua, e, em seguida, o meu guarda–chuva. Ele infla as asas negras, rugindo. E como um estranho cogumelo aflora debaixo d’água. Reparo que agora ele não tem nada a ver com o objeto anterior que tanto me chamou à atenção, jogado no canto de meu quarto. Está em plena atividade. Acordou.
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